http://www.criticandokardec.com.br/design_inteligente.htm
Revisado em julho de 2011.

 

 

O Que é a Questão do Design Inteligente na Evolução Biológica?

 

 

A explicação para o surgimento da vida e das diversas espécies de seres vivos na Terra tem sido um tema turbulento especialmente nos últimos 140 anos, depois da obra de Darwin e Wallace, o livro "Origem das Espécies". A visão darwinista foi modificada, ou, digamos, "aprimorada", e por volta dos anos 40 do século XX surgiu aquilo que ficou conhecido como a "Síntese Moderna" ou "Teoria Neo-Darwinista" para a origem das espécies e das novidades evolutivas (Notem que a origem da vida em si, ou seja, o salto das "moléculas biológicas" para as "células", é ainda um ponto com boa dose de problemas explicativos, apesar de haver boas hipóteses materialista-mecanicistas para o processo). A idéia central é simples, interessante, e poderosa: variações aleatórias herdáveis nos seres vivos são submetidas à pressão seletiva do meio ambiente. Mutação mais Seleção igual a Evolução. Toda uma teoria biológica imensa em uma simples fórmula, que poderíamos descrever como E = M + S. Chega a lembrar a famosa E = M.C2...

 

Essa noção se choca com muitas visões religiosas. Onde entra Deus nisso tudo? Como ele faz parte do esquema? Algumas religiões rejeitam a teoria evolutiva biológica neo-darwinista. Algumas aceitam. Atualmente, a Igreja Católica parece aceitar praticamente sem restrições. Mas a questão do planejamento, ou seja, da possibilidade de que talvez alguém ou algo participe, ainda que por vezes ou em parte, dos processos evolutivos através de um planejamento, continua como uma pulga atrás da orelha de muitos. Pode ser mera ilusão, e não haver planejamento algum. Pode não haver nenhum planejador, nenhum "designer" ("designer" em inglês quer dizer "planejador", aquele que planeja). Então, não haveria nenhum planejamento, nenhum "design" ("design" em inglês quer dizer "planejamento"), no esquema evolutivo. Ou talvez haja de fato um designer, que poderia ser "Deus" (o deus Católico, por exemplo; ou, em um outro exemplo, o deus Islâmico Alá), "um deus", ou algum componente natural "não divino" (ou seja, que não desfrute de atributos que nos levem a considerá-lo como algo divino).

 

Nesse contexto, o bioquímico Michael Behe apresentou um livro intitulado "A Caixa Preta de Darwin" (Darwin's Blackbox, 1998) onde ele alega que há na natureza sinais da ação de um designer bastante poderoso intelectualmente. Não li o livro. Li alguns artigos de Behe online na internet, e textos onde alguns pesquisadores o atacam e onde ele se defende. Behe afirma que alguns sistemas biológicos exibem o que ele chama de Complexidade Irredutível, ou seja, um tipo de complexidade que não poderia ser criada pelos mecanismos propostos pelo neo-darwinismo, sendo necessário o planejamento prévio realizado por um "planejador", por um "designer" (o Deus da Igreja Católica, ou Deus Teísta, por exemplo), que soubesse o quê estava fazendo, e para quê estava fazendo (ou seja: presença da intenção, ou teleologia, na evolução biológica). Behe cita como exemplos disso algumas vias metabólicas (acredito que o Ciclo de Krebs seria um exemplo) e algumas funções fisiológicas moleculares, como o sistema de coagulação do sangue em mamíferos, composto de muitas proteínas diferentes agindo de modo meticulosamente orquestrado. A retirada de qualquer um dos elementos desses sistemas destruiria o funcionamento do mesmo. Behe conclui então que ele foi planejado todo de uma vez só, por um designer bem inteligente e cheio de intenções (teleologia/teleonomia) e idéias. O argumento de Behe parece interessante. Contudo, a mim ele parece claramente fazer parte de um esquemão ideológico que quer forçar a idéia de algum tipo de criacionismo, e levar a comunidade científica e as instituições educacionais infanto-juvenis a engolir isso. Penso isso porque não me parece que Behe de fato tenha demonstrado que seja impossível que tais sistemas surjam por mecanismos neo-darwinistas clássicos. Ele apenas apontou que tal surgimento é improvável. [Dentro do, digamos, "movimento defendendo a idéia do Design Inteligente", um outro grande nome é o filósofo William Dembski. Dembski apresenta um argumento relativamente similar ao de Behe, que é a idéia de que existe algo que ele chama de "Informação Complexa Especificada" (CSI, Complex Specified Information), ou simplesmente "Complexidade Especificada" (Specified Complexity). Em linhas gerais, a Complexidade Especificada de Dembski e a Complexidade Irredutível de Behe me parecem bastante similares em alguns aspectos cruciais, principalmente nas falhas e na clara distorção do uso da lógica e da ciência em prol de iniciativas político-religiosas junto à sociedade e às instituições científicas e educacionais]. Em resumo, Behe e colegas parecem interessados em "infiltrar uma religião" (ou uma idéia e ideologia religiosa específica) dentro da ciência. Alguns podem considerar isso uma intenção e atitude errada. E de fato é. Sou contra a presença de uma ideologia religiosa na ciência..

 

Curiosamente, o maior obstáculo que Behe enfrenta é justamente o fato de já haver na ciência, muito bem incrustada, uma ideologia religiosa aí indevidamente posicionada: o materialismo! O materialismo, conforme praticado por alguns (ou muitos), se mostra claramente como uma religião. Um exemplo de militante aguerrido de tal religião materialista é, Richard Dawkins, um renomado zoólogo inglês (na verdade ele nasceu no Quênia, tendo sua família retornado para a Inglaterra quando ele tinha oito anos). Outro exemplo é o físico estados-unidense Victor Stenger. Tal materialismo religioso, ao invés de dizer "Não sabemos se existe Deus ou não, e não sabemos se existem espíritos ou não", advoga irracional e dogmaticamente que "Não existe Deus nem espíritos" (essa idéia é passada por vezes de modo implícito; outras vezes mais explicitamente).

 

O que deveríamos fazer é tirar do seio da ciência esse tipo de religião materialista. E não acrescentar mais uma religião, como me parecem querer Behe e colegas.

 

Mas a discussão sobre design inteligente é a meu ver muito rica. Ela deve ser travada sem os ranços religiosos, quer espiritualistas, quer materialistas. É importante discutirmos questões como:

 

1- As espécies biológicas, as estruturas biológicas, e as novidades evolutivas podem ser explicadas pelo neo-darwinismo, ou há exemplos que estão além da capacidade explanatória neo-darwinista, e por quê?

 

2- O que é planejamento?

 

3- O que é intenção, e como a intenção se relaciona com planejamento?

 

4- O que é inteligência, o que é consciência, e como uma se relaciona com a outra?

 

5- Como fica a realidade do planejamento e da intenção se pensarmos que o mundo é talvez totalmente determinista (física clássica) ou talvez totalmente aleatório (física quântica)?

 

Enfim, todo um mundo de questões interessantes obliteradas por briguinhas religiosas entre crentes e descrentes...

 

Um ponto, por exemplo, que os defensores da existência de um designer não parecem perceber é que se um determinado sistema for considerado como irredutivelmente complexo, e a partir daí passarmos a achar que ele foi projetado por um designer (por Deus ou etc), então passaremos a ter um Deus ou etc (um designer) que é, ele mesmo, um sistema irredutivelmente complexo. Tão ou mais complexo que o sistema que ele criou. Então esse sistema irredutivelmente complexo (Deus) provavelmente foi criado por outro designer anterior, e assim talvez ad infinitum. Deuses tendo sido criados por Deuses e assim seguindo em uma sucessão sem fim... Um segundo ponto interessante é que o designer (e tanto faz se o designer for um Deus, um homem, ou uma simples célula) só é capaz de fazer aquilo que ele já sabe (quer seja um Universo, um carro, uma mitocôndria, ou um Ciclo de Krebs). Dentro do meu modo de ver tais questões, e dentro de minhas potencialidades intelectuais, o único mecanismo que eu entendo ser capaz de fato de criar "novidades" (novidades evolutivas, ou intelectuais, ou etc; ou seja, criar conhecimento novo, além daquilo que o sistema "já sabe") é o tateamento tipo "tentativa e erro ou acerto" somado a um "mecanismo de verificação de sucesso". A seleção natural seria um exemplo de "mecanismo de verificação de sucesso". Da mesma maneira, o nosso sentimento que temos quando entendemos alguma coisa (aquela luz que acende na nossa cabeça, e dizemos "É Isso!", ou "Eureka", ou ainda em inglês "Aha", pronunciando-se "arrá". É o famoso "Aha Feeling") é também um mecanismo de verificação e validação de sucesso. O mecanismo de tateamento do tipo tentativa-erro-acerto pode ser aprimorado através de estratégias onde o organismo "sabe o que não deve ser tentado", ou, em extensão a isso, onde o organismo "saiba as áreas específicas onde a tentativa deve ser realizada" (isso acontece mesmo com algumas células, que "sabem" que devem, diante de uma dada situação ambiental, realizar mutações em algumas poucas áreas de um determinado gene, e somente nessas áreas do gene; o mundo intelectual humano com certeza exibe exemplos ainda mais notáveis).

 

Aqueles que defendem o neo-darwinismo e atacam Behe costumam dizer que há de fato designers (ou seja, projetistas) inteligentes, mas não na evolução biológica. Um exemplo de designer inteligente (projetista inteligente) seria o ser humano. Ou seja, os neo-darwinistas são normalmente crédulos em aceitar que o ser humano exerce de fato o poder de projetar inteligentemente as coisas (inclusive com livre arbítrio...). É interessante que até isso é questionável (vide a hipótese da seleção universal, especialmente como apresentada pelo psicólogo Gary Cziko em seu livro Without Miracles: Universal Selection Theory and the Second Darwinian Revolution, neste link. Possuo uma resenha sobre esse livro, em inglês, neste link.). Muito provavelmente, quando tentamos encontrar a solução para um problema novo, o que fazemos é criar uma simulação mental de diversas situações (usando dos nossos mecanismos de representação do mundo dentro de nossos cérebros e mentes), como um programa de computador altamente sofisticado, e aí as diversas alternativas vão sendo testadas por um "mecanismo verificador de sucesso" que em última instância é o (ou está intimamente ligado ao) "Aha feeling" (Eureka! É isso!). Há quem diga que nesse processo diversos grupos de neurônios começam a crescer, fortalecer entre si ligações sinápticas, e competir com grupos de neurônios antagônicos (vide link sugerido acima). No final das contas, o mecanismo não seria muito diferente da evolução biológica natural. Apenas mais rápido. Então por quê tanto interesse em dizer que células não realizam projetos inteligentes e ser humanos realizam projetos inteligentes (como fazem os neo-darwinistas clássicos)? Ou, ao contrário, por quê tanto interesse em dizer que as células realizam sim projetos inteligentes, mas não pelo poder delas próprias, e sim por um poder maior e oculto, Deus, etc (como fazem Behe e colegas)? Parece-me mais briga religiosa...

 

Minha posição pessoal com relação às cinco questões mais acima (que eu numerei de 1 a 5) é a seguinte:

 

1- Eventos Evolutivos Inexplicáveis pelo Neo-Darwinismo: há de fato muitos pontos que são mal explicados pelo neo-darwinismo com relação ao desenvolvimento de características biológicas, em especial características biológicas complexas. Contudo, tal dificuldade pode ser menos da teoria e mais de nossa capacidade de "rodar" simulações mentais de tal teoria. Para sabermos, ou sondarmos melhor, se há de fato algo que possa ser descrito como uma "Característica Irredutivelmente Complexa" a melhor opção é usarmos de simulações computacionais da evolução. Tais simulações mostram que por vezes aquilo que parecia impossível não passa de algo bastante improvável. Eu pessoalmente só conheço um exemplo de característica que me parece impossível de ter surgido através da evolução biológica: a consciência (experiência subjetiva). É um único e singelo exemplo, e eu nem sei se se trata de uma característica complexa ou não. Mas é um exemplo capaz de detonar todo o esquemão materialista tradicional...

 

2- Planejamento: quando planejamos algo, criamos uma simulação mental de diversos eventos possíveis, através de uma representação interna do mundo externo, e escolhemos um dos eventos possíveis que acaba sendo então o "plano". Esse processo é deflagrado (iniciado) por estímulos externos e/ou internos (como: ausência de comida levando à fome, etc), passa pela etapa de geração de alternativas para solucionar o problema (simulações usando de representações internas, e competição entre alternativas), e acaba levando ao "plano final" (que aparece através da "escolha"); normalmente todo esse processo é seguido ainda pela "deflagração da ação" (ou seja, a decisão de tornar real a escolha realizada). Todo esse processo é algo objetivo, que ocorre no organismo humano, nos nossos neurônios, etc. E parte desse processo é acompanhada de uma contrapartida subjetiva (ou seja, de consciência do processo). O estímulo deflagrador pode ser acompanhado de uma experiência subjetiva (sensação de fome); as simulações usando representações também podem ser acompanhadas de experiências subjetivas (identificação das alternativas de sanar a fome ou indo caçar ou indo ao McDonnald's, etc); o plano final também pode vir acompanhado de uma experiência subjetiva (sensação de escolher entre as alternativas); e finalmente a decisão de implementar a escolha também pode ser seguida de experiência subjetiva (no caso, do "livre arbítrio" de agir).

 

3- Intenção versus Planejamento: do que eu descrevi no item anterior, é interessante definirmos intenção e planejamento como coisas bem distintas. No caso (ou seja, nesse ponto do texto), por planejamento eu não quero dizer o processo que leva ao plano final; quero dizer o próprio plano final em si. Portanto, planejamento, ou plano final, é a parte objetiva (digamos, neuronal). Enquanto intenção é a parte subjetiva, a experiência subjetiva (consciência) que vivenciamos junto com o plano final. Isso é um ponto muito importante. Podemos aceitar que um computador execute algum tipo de planejamento, até mesmo planejamento inteligente. Mas isso não quer dizer necessariamente que junto com tal fato objetivo esse computador também vivencie uma experiência subjetiva de intencionalidade.

 

4- Inteligência versus Consciência: atualmente, penso ser mais produtivo pensarmos em inteligência como a capacidade de um sistema de interagir com seu ambiente de modo adaptativo, garantindo seu bem estar e sobrevivência. Por exemplo, um sistema celular que produza sempre uma determinada molécula é menos inteligente do que um sistema celular que identifica se tal molécula é necessária naquele momento e só então a produz. Igualmente, acho fértil pensarmos que muitos sistemas computacionais são inteligentes, capazes de avaliarem um quadro e tomarem uma decisão mais apropriada à situação. Inteligência é o funcionamento bem sucedido de uma mente. Então, dentro de minhas definições, até células individualmente possuem, ou são, mentes dotadas de inteligência (apesar de não serem nenhuma "Brastemp"...). Mas isso não quer dizer necessariamente que elas vivenciem uma experiência subjetiva de qualquer tipo. (Parênteses importante: por vezes se usa a metáfora segundo a qual o cérebro é o hardware e a mente é o software. Atualmente penso que, a rigor, softwares não existem, sendo eles na verdade meros estados do hardware).

 

5- Há de fato planejamento e intenção em um mundo totalmente determinista ou totalmente aleatório? Essa é uma questão interessante. Intenção, eu penso que há (sensação subjetiva). Já planejamento, se depender da existência de livre arbítrio, não. Normalmente entendemos o planejamento e a escolha como fruto de um livre arbítrio nosso, e não como uma resposta mecânica e determinista à qual estejamos submetidos. Esse último entendimento eu penso ser um erro, uma ilusão. Não acho que exista de fato escolha e livre arbítrio, apenas determinismo, aleatoriedade, ou aleatoriedade com tendência (como ocorre na meia-vida de alguns componentes subatômicos). O livre arbítrio é como a "diminuição da entropia": só ocorre enquanto ilusão ao olharmos um sistema isolado do meio no qual ele está inserido. Se olharmos (ou se pudéssemos olhar) o todo, penso que não identificaríamos nem diminuição da entropia e nem livre arbítrio real.

 

Então, em um certo sentido, eu penso que existe tanto planejamento inteligente em um homem (Kasparov) ao jogar xadrez quanto em uma célula (como a bactéria Escherichia coli) ao "decidir" sintetizar beta-galactosidase. Se esses eventos são acompanhados de consciência ou não, isso já é outra questão...