Refletindo Sobre a Resenha de Daniel e Natacha Gontijo ao Livro “Ciência da Vida Após a Morte” (de Alexander Moreira Almeida e colaboradores, ano 2023)

 

 

 

Esta reflexão está sendo feita originalmente para apresentação no grupo de WhatsApp do ECAE (grupo de Estudos Científicos Avançados sobre Espiritismo, criado pelo pesquisador Vitor Moura), no grupo de Telegram do IPA+ (Instituto Ponto Azul, criado pelo psicólogo Daniel Gontijo), e no meu site Criticando Kardec.

 

 

Contexto desta reflexão

 

Já de muitos anos que tenho um interesse visceral na questão de nossa possível sobrevivência após a morte. Esse interesse, em décadas mais recentes, resultou em um estudo meu, entre os anos de 1997 e 2002, da obra de Allan Kardec, levando à criação do site Criticando Kardec em 2002. Logo posteriormente, me aprofundei muito em questões da Parapsicologia, notadamente “telepatia” testada sob o protocolo Ganzfeld, “psicocinese” estudada sob o programa de pesquisa MicroPK (capacidade de influência da mente humana sobre geradores de números aleatórios), e casos de crianças que alegam lembrar de vida passada (como estudados pioneiramente por Ian Stevenson, com o nome/acrônimo CORT, “cases of the reincarnation type”). Me aprofundei também bastante em NDE/EQM (experiências de quase morte) e OBE/EFC (experiência fora do corpo). Meu aprofundamento no fenômeno da “mediunidade” foi o de menor fôlego, em grande medida se limitando à leitura atenta do livro “Immortal Remains”, de Stephen Braude. Entre 2002 e 2008, reuni (tive contato com, através da literatura relevante, e em intensos debates na internet) um conjunto a meu ver impressionante de evidências favoráveis à hipótese da sobrevivência após a morte, bem como reflexões e ponderações aprofundadas e embasadas apoiando tal hipótese (subsidiariamente, me aprofundei também muitíssimo na questão do “ceticismo” e do “ceticismo moderno organizado”). Foi então que, por volta do ano de 2008, eu... empaquei! Todo e qualquer estudo adicional a essa questão me pareceu, em grande medida, irrelevante e incapaz de levar a conclusões confiáveis. A coisa chegou ao seguinte extremo: imaginem que a Ciência descobrisse que temos de fato um “corpo sutil” feito de alguma substância recém identificada (como a moderna “matéria escura” ou algo similar) e que esse corpo sutil reside no cérebro, reproduz a estrutura cerebral e opera processamentos de informações e pensamentos, em grande medida na verdade dirigindo o cérebro, e que tal corpo sutil é depositário (ou... é local de cópia de) nossos processos de pensamento, de memória, e de características de personalidade. E que tal corpo sutil sobrevive à morte. Não tenho a menor dúvida que em um quadro desses quase todos os céticos e ateus materialistas do mundo seriam convertidos de imediato e passariam a acreditar na vida após a morte, na nossa sobrevivência ao fenômeno da morte física. Bem, eu não... Eu, que não sou ateu materialista, eu que acredito (acredito no sentido de que minha intuição e minha emoção me dizem que essa é a verdade) na minha e na nossa sobrevivência pós morte, eu continuaria não achando que podemos ter certeza de nossa sobrevivência pós morte, em termos científicos e racionais. O motivo de minha dúvida, e de meu fortíssimo “empacamento” (paralisação epistemológica...), é a questão da consciência! A questão da consciência passou a ser para mim o centro de tudo, e me parece, na melhor das hipóteses, beirar as raias da insolubilidade. De forma resumida, minha saga poderia ser descrita como eu inicialmente crendo fortemente haver evidências da sobrevivência, eu depois sabendo e conhecendo farto material evidencial indicativo da sobrevivência após a morte, e eu por fim passando a duvidar até da... sobrevivência antes da morte! Isso é um papo longo e convoluto. Para efeitos deste texto meu, cabe apenas eu dizer que, agora, em 2023, estou voltando a me debruçar sobre essas questões. E, naturalmente, estou... enferrujado. Mas não estou morto.  . Estou retomando essas questões em primeiro lugar para dar continuidade ao meu caminho através delas. Em segundo lugar, estou retomando tais questões para colocar em forma de livro meu site Criticando Kardec (com vistas a dar uma visibilidade mais digna a esse material que me parece de um valor fundamental, e que é muito desconhecido; o grupo do Alexandre Moreira Almeida, por exemplo, parece desconhecê-lo por completo). Nesse contexto, algumas obras de revisão do tema se mostram como indispensáveis em um primeiro momento de retomada de estudos. O livro “Immortal Remains”, de Stephen Braude, é uma delas, bem como o livro “Mediumship and Survival”, de Alan Gauld. E, também, esse livro recente do Alexandre Moreira Almeida e colaboradores, “Ciência da Vida Após a Morte”. Nesse sentido, li e estou estudando tal livro. E também estou estudando resenhas a ele que pareçam enriquecedoras para o debate. Então é nessa perspectiva, de reflexão e tentativa de avanço do entendimento, que analiso agora a resenha feita por Daniel e Natacha Gontijo a esse livro.

 

 

Análise da Resenha

 

A resenha de Daniel e Natacha Gontijo ao livro de Alexander Almeida e colegas foi publicada na revista Interações, da PUC de Minas (Interações, Belo Horizonte, Brasil, v. 18, n. 02, e182r01, p. 01-08, jul./dez. 2023). Nela, o livro em questão é citado logo no início da resenha como Moreira Almeida, Alexander; Costa, Marianna Abreu; Coelho, Humberto Schubert. Ciência após a morte. Belo Horizonte: Ampla, 2023. p. 96. Me parece que houve um erro menor ao expor o título como apenas Ciência após a morte, em vez de Ciência da vida após a morte. Minha visão geral com relação a essa resenha de Gontijo&Gontijo é de que é um texto interessante (enriquecedor para a reflexão sobre a questão), que acerta em muitas das críticas, e que possui uma perspectiva construtiva e socialmente benéfica ao afirmar a validade de tais estudos de possíveis evidências científicas embasadoras de algum tipo de sobrevivência do ser humano à morte. Vejo, contudo, alguns problemas também, como pontos mal identificados, críticas não tão bem direcionadas, e conclusões em alguns pontos talvez equivocadas. Ressalto que minha posição com relação ao livro de Alexander e colaboradores é, também, de muita crítica, digamos. A meu ver há muitos problemas na obra, e isso mesmo sem eu ainda ter feito uma análise minuciosa das fontes citadas no livro (e tal análise é indispensável para uma crítica mais além; muito provavelmente virei a fazer tal análise, em diversos dos estudos citados por eles). Refletirei então a seguir sobre diversos pontos específicos da resenha Gontijo&Gontijo.

 

Os autores da resenha começam descrevendo a proposta e a pergunta central, por assim dizer, do livro: “É possível investigar cientificamente a hipótese de que a consciência sobrevive à morte do corpo?”. Esse por si só já me parece um modo muito problemático de colocar a questão, e tanto os autores do livro (doravante Almeida et al) quanto os autores da resenha (doravante Gontijo et al) se deixam, a meu ver, atolar nessa areia movediça conceitual que envolve os termos consciência, mente, alma, personalidade, espírito, etc. Muitos autores incorrem em problema similar. A meu ver, a princípio, sobrevivência da mente é algo radicalmente diferente de sobrevivência da consciência (e, inclusive, um pode, hipoteticamente, sobreviver e o outro não, e vice versa). Uma boa definição e distinção de tais termos é fundamental pra se discutir possíveis sobrevivências após a morte.

 

Um ponto a seguir é como Gontijo et al descrevem e abordam o capítulo 2, “A ideia da sobrevivência da alma na história das religiões e na filosofia”. O capítulo é, em parte, descrito por Gontijo et al como apresentando endosso de intelectuais ao dualismo, e Gontijo et al afirmam: “Embora eles tenham sido bem-sucedidos nisso, notamos um exagero aparentemente seletivo na forma elogiosa com que eles mencionam teóricos dualistas”. Nesse ponto, Gontijo et al ressaltam que os teóricos do “dualismo” recebem adjetivos lisonjeiros no livro (como por exemplo o físico Henry Stapp), enquanto os não dualistas não são tratados do mesmo modo. Citam: “Darwin é introduzido apenas como... Darwin (p. 14)”. Aí afirmam: “Obviamente, nosso incômodo não reflete a ausência de louros endereçados aos monistas, mas ao excesso de honrarias concedidas aos dualistas – as quais, no nosso entendimento, flertam com o apelo à autoridade e podem confundir os espíritos menos versados em Filosofia”.

 

Há, a meu ver, alguns problemas nessa abordagem de Gontijo et al. Acho que esse capítulo de Almeida et al é muito problemático de fato, com muitos pontos a meu ver ruins, ou negativos, ou contraproducentes. Explicarei melhor isso em minha análise ao livro em si, que farei somente daqui a alguns dias e/ou semanas (ou meses...). Em todo o caso, eu descreveria o capítulo, e seus objetivos, de um modo um tanto quanto diferente de como descreveram Gontijo et al. Me parece que um objetivo do capítulo é mostrar que a crença no dualismo (onde haveria espaço para almas, ou espíritos, ou coisas similares) não é algo frágil intelectualmente. Esse ponto inclusive Gontijo et al haviam ressaltado um pouco antes na resenha. Mas além desse ponto de partida inicial, Almeida et al parecem querer desenvolver a tese de que o dualismo sempre foi a regra do pensamento humano, por assim dizer, enquanto a negação da possibilidade de “algo transcendente” (que Gontijo et al chamam de monismo) seria um desenvolvimento recente fruto principalmente de um descaminho do pensamento científico ocidental nos últimos 150 anos mais ou menos. É uma tese ousada. E a meu ver errada. E simplória... Mas, sim, é defensável e potencialmente enriquecedora para o debate e para o entendimento dessas questões. Daí vem a reclamação de Gontijo et al da ausência de elogios aos não dualistas, ou aos monistas. No fundo, me parece que Gontijo et al estão justificados nessa reclamação. Contudo, o exemplo usado não me parece adequado, pois que Darwin foi citado em um ponto mais estritamente técnico-científico, diferentemente de Stapp e outros (dualistas), que foram citados em um trechos mais ideológico-políticos (inclusive Darwin nem pode ser descrito apropriadamente como monista... Nem mesmo em seus anos de vida finais). Os termos finais de Gontijo et al nesse ponto possuem um certo grau de verdade, ou seja, o alerta que fazem na resenha contra um possível apelo à autoridade por parte de Almeida et al. Há, a meu ver, um grau preocupante disso no capítulo 2. Contudo, a frase mais ao final desse trecho que eles escolhem usar, ao dizerem que isso pode “confundir os espíritos menos versados em Filosofia”, é um pouco problemática. Seria, neste ponto, interessante Gontijo et al citarem que Filosofia e que filósofos, e como, se oporiam à tese geral de Almeida et al no capítulo 2. Poderiam, por exemplo, citar dois filósofos monistas (ateu materialistas) influentes de entre os séculos, digamos, X e XVIII. Então, nós leitores menos versados em Filosofia ficamos no aguardo dessa contribuição de Gontijo et al...

 

Aí Gontijo et al passam a se debruçar sobre o capítulo 3, e o descrevem como “O terceiro capítulo é dedicado a criticar alguns argumentos neurocientíficos a favor do monismo”. Esse não é o objetivo do capítulo. O objetivo deste terceiro capítulo é refutar as principais objeções à hipótese da sobrevivência. Os “argumentos neurocientíficos” são apenas um dos pontos abordados, ainda que de importância nevrálgica (figurativa e literalmente  ). Vou reproduzir três trechos estreitamente relacionados entre si dessa parte da resenha de Gontijo et al (tanto em termos de ideias quanto em termos de proximidade física no corpo do texto) e a seguir tecerei algumas considerações:

 

1- “A despeito de seu apelo intuitivo, essa hipótese do cérebro instrumental sugere a existência de variáveis (espirituais) aparentemente irrelevantes para compreendermos o comportamento humano”.

 

2- “Sendo ainda mais específicos, tal como a seleção natural explica satisfatoriamente a origem das espécies sem invocar divindades (Plantinga; Dennett, 2022), parece não ser necessário adicionar espíritos aos modelos teóricos que explicam a origem da consciência (Damásio, 2000). Mas, segundo os autores, a existência de experiências anômalas que desafiam teorias monistas justificaria a consideração científica da hipótese de que mente e corpo são substancialmente distintos”.

 

3- “Embora haja vários tipos de dualismo, optamos por utilizar esse termo a fim de tornar a linguagem mais parcimoniosa. Daqui em diante, ‘dualismo’ e ‘dualista’ significam, respectivamente, a ideia de que a existência da mente/consciência não depende do corpo/cérebro e aquele que acredita nessa ideia. Em oposição, ‘monismo’ e ‘monista’ significam, respectivamente, a ideia de que a existência da mente/consciência depende (ou faz parte) do corpo/cérebro e aquele que acredita nessa ideia”.

 

Esse terceiro trecho apenas mostra a definição usada por Gontijo et al para os termos monismo e dualismo, e monista e dualista. No primeiro trecho, eles citam a hipótese do cérebro instrumental, defendida, digamos, por Almeida et al. Por essa hipótese o cérebro não produziria a mente e a consciência, e sim “meramente” transmitiria ou filtraria tal mente/consciência, assim como uma televisão não produz as imagens, apenas as transmite. O ponto importante que eu gostaria de ressaltar é que tal hipótese não surgiu do nada. Há um bom grau de embasamento, um bom grau de necessidade, um bom grau de vazio explicativo nos modelos mais aceitos pela Ciência Predominante (Mainstream Science) que levam alguns pensadores a cotejarem a possibilidade de tal hipótese ser válida. Um livro que esmiúça essa questão, e que li com grande cuidado e resenhei e debati intensamente (tenho muitos textos no meu site Criticando Kardec sobre isso) foi o livro “Irreducible Mind”. Abaixo, links para tais discussões, em inglês (o leitor interessado que não conheça inglês adequadamente pode usar o tradutor do Google). Esse livro foi produzido pelo grupo do pesquisador Edward F. Kelly.

 

https://www.criticandokardec.com.br/amazon_reviews.htm#kelly


https://www.criticandokardec.com.br/irreducible_mind.htm


https://www.criticandokardec.com.br/irreducible_skepticism.htm


https://www.criticandokardec.com.br/dieguez_vs_jime.htm


 

O grupo de Edward Kelly produziu posteriormente o livro “Beyond Physicalism”, e há uma obra mais recente deles nessa linha também (“Consciousness Unbound”). Não se tratam de questões quaisquer. São pontos altamente interessantes, ricos, válidos, e potencialmente necessários. Pessoalmente, vejo muitos problemas na “hipótese do cérebro instrumental”. Mas o fato é que a Ciência é repleta de pontos na verdade mal explicados onde se acredita, erroneamente, que já atingimos plenitude de conhecimento. Gontijo et al citam que a seleção natural explica satisfatoriamente a origem das espécies. Não sei de onde eles tiraram isso (Plantinga/Dennett...), mas a realidade é muito longe disso. E estou me referindo estritamente ao conhecimento predominante (“mainstream”) na Biologia Evolutiva atual. Não, ninguém recorre ou especula sobre deuses ou espíritos nisso. Mas a frase usada por Gontijo et al não bate com o que se conhece (Pirula confirmará de pronto!). Pior ainda é dizer que parece não ser necessário adicionar espíritos aos modelos teóricos que explicam a origem da consciência (Damásio, 2000). Que modelos teóricos? Como se houvesse algum minimamente satisfatório...; mas, sim, alerto que essa é uma posição minha. Dennett por exemplo parece ainda acreditar piamente no “modelo” dele de “heterophenomenology”. Me engana que eu gosto...:

 

https://www.criticandokardec.com.br/amazon_reviews.htm#albusdumbledennett

 

E apesar de, de fato, Damásio, na obra citada por Gontijo et al (“O Mistério da Consciência”), não chegar a bater atabaque para evocar entidades explicativas dos processos de funcionamento do cérebro que seriam responsáveis pela geração da consciência, ele não só deixa claro a lacuna explicativa ainda existente nesse mister (página 25: “Acredito que essas qualidades” – qualia – “serão um dia explicadas pela neurobiologia, embora nesse momento a explicação biológica seja incompleta e lacunar”) como indica fontes de crítica devastadora ao “monismo” (página 425 “Para um exame crítico pertinente, ver J. Levine, ‘Materialism and Qualia: the Explanatory Gap’ ”; Levine foi, por assim dizer, o precursor do “dualismo” de David Chalmers inaugurado no livro “The Conscious Mind”) e ainda tece comentários respeitosos à abordagem justamente de um dos “dualistas” que Gontijo et al reclamaram quanto aos elogios recebidos de Almeida et al (página 426, onde Damásio afirma considerar o trabalho do físico Henry Stapp como pertinente à elucidação da base física do problema dos “qualia”). Então nesse ponto a citação feita por Gontijo et al, além de indevida (por minimizar o tamanho da lacuna explicativa na questão consciência-corpo), é também indutora de erro (ao descaracterizar a verdadeira posição de Damásio de um modo mais geral na obra citada, e levar os leitores da resenha a crer que a visão pacífica neste campo de estudo é, já, digamos, “não lacunar”).

 

A seguir, Gontijo et al passam a se debruçar sobre o quinto capítulo (“As melhores evidências disponíveis para a vida após a morte”). Em suas palavras: “Iniciamos a leitura do quinto capítulo com a mente e o coração abertos. Dezenas de pesquisas interessantes são apresentadas, e seus achados são claramente compatíveis com a hipótese de que temos um espírito que sobrevive à morte do corpo. Por outro lado, compatibilidade teórica não pode ser confundida com consistência científica e nem sempre envolve evidências de boa qualidade – e, no nosso entendimento, os autores fazem essa confusão e apresentam muitas evidências ruins como se fossem razoáveis”.

 

Melhor que mente e coração abertos teria sido mente e coração espertos... Essa área de conhecimento é altamente matreira, e igualmente o são (naturalmente) aqueles que a estudam, tanto os que acreditam na sobrevivência pós morte quanto os que se posicionam contra tal tese. Não só fraude consciente de ambos os lados (e em diferentes graus, por vezes relativamente sutis), mas má observação, mau relato, e “deslizes” os mais diversos mais ou menos inconscientes. E tudo isso em parte motivado por uma miríade de razões mais ou menos válidas, o que complica tudo ainda mais em termos emocionais e até cognitivos. A meu ver, adentrar tal seara com o coração aberto é receita certa para a indevida decepção e rejeição. Logo a seguir, Gontijo et al usam do termo “consistência científica”. No idioma inglês, há uma tendência em se usar tal termo (“consistency”) significando coerência, e fiquei com a impressão que esse é o significado intencionado por Gontijo et al (em vez de “sólido”, que seria o significado mais comum para o termo “consistente” em português). Basicamente Gontijo et al acreditam que Almeida et al apresentaram, neste capítulo crucial, muitas evidências ruins como se fossem razoáveis. Isso é uma acusação muito forte, muito grave. E, se possuir algum fundo de verdade, é, paradoxalmente, uma acusação muito fértil. Gontijo et al deveriam ter dado alguns exemplos dentre as evidências citadas, e explicar de modo claro e inequívoco porque se tratam de evidências ruins, e em que sentido são ruins. Assim como a apresentação de tais evidências por Almeida et al neste capítulo 5 é a verdadeira “alma” da obra em questão, a condenação a tais evidências feita por Gontijo et al é, igualmente, a “alma” da resenha em questão. E, lamentavelmente, como costuma acontecer com a grande maioria das “almas”, a alma da resenha de Gontijo et al acabou ficando... escafedida (aliás, muitíssimo mais do que a de Almeida et al!). E é fundamental frisar que além da natureza da evidência em si (sua descrição o mais fidedigna e completa possível), existe o outro lado da moeda, praticamente tão importante: como tal evidência está sendo usada; que tese se tenta defender com a evidência em questão. O livro de Almeida et al apresenta, nesse quesito, um certo grau de altos e baixos que me parecem altamente ricos de serem olhados com atenção, tanto para que façamos avaliações e críticas que possam ser justas e potencialmente melhorar a obra em si, quanto para que tais melhorias se estendam a todo esse campo de estudo específico. A posição de Gontijo et al de meramente dizer que Almeida et al “apresentam muitas evidências ruins como se fossem razoáveis”, e dizer isso sem análise, sem justificativa, sem contextualizar o balanço evidência vs hipótese, se constitui em algo fortemente contraproducente (além de incorreto no que concerne a talvez a maior parte dos casos de fato citados por Almeida et al). Muitos leitores da resenha podem ficar com a impressão equivocada de que Gontijo et al de fato analisam devidamente tais pontos em suas frases e parágrafos posteriores, mas na verdade eles apenas acrescentam desinformação e erro de alvo, conforme comentarei a seguir.

 

Gontijo et al tentam apresentar uma refutação abrangente e sólida com o trecho a seguir: “Em primeiro lugar, grande parte dos estudos citados consiste em relatos de caso. Basicamente, esse tipo de investigação não é capaz de produzir resultados ou conclusões generalizáveis (Appolinário, 2012), e tende a ser bastante deficiente no controle da fraude e de inúmeras variáveis confundidoras”. O problema grave aqui é que Gontijo et al de fato parecem sinceramente acreditar que sabem do que estão falando, quando qualquer pessoa que possua um bom aprofundamento nesses estudos “sobrevivencistas” (ou seja, estudos de fenômenos onde os pesquisadores cotejam como explicação a hipótese da vida após a morte; é comum vermos o termo, em português, sobrevivencialista, seguindo o pareamento do inglês “survival-survivalist”; mas acho mais apropriado usarmos, no português, o termo sobrevivencista, sem letra “l”, seguindo o pareamento sobrevivência-sobrevivencista, mais de acordo com nosso vernáculo) percebe que eles estão longe de estarem devidamente inteirados das informações relevantes de modo a poderem fazer da referência Appolinário 2012 uma fonte apropriadamente utilizável. A diferença entre diversos dos casos citados por Almeida et al no que tange a profundidade, complexidade, e confiabilidade de informações chega a ser, em muitas situações, quase astronômica. Almeida et al me pareceram não ter chamado a atenção para esse ponto por vezes devido a, talvez, um espírito de “brevidade” e “introdutoriedade” da obra, e por outras vezes devido a, muito provavelmente, falta de consciência deles próprios quanto a tal diferença na base de dados do seu livro... E em todas essas situações estamos falando de relatos de casos. Sim, um caso bem estudado, bem analisado, pode fornecer insumos científicos de altíssima qualidade, chegando por vezes sim a ser tão bom ou até melhor do que estudos experimentais. Relato de caso é basicamente algo que pertence à vertente observacional da Ciência, e não há de fato primazia da vertente experimental sobre a observacional. O importante é fazer as coisas do modo certo, descrevê-las posteriormente do modo certo, e aplicar sobre as informações obtidas o raciocínio apropriado, devidamente embasado pelo que se conseguiu amealhar. E aí não tem jeito. Temos que olhar caso a caso, estudo a estudo, e buscarmos o máximo de informação sobre tais estudos, forças, fraquezas, características, etc. E, claro, isso é fundamental não apenas se alguém quiser rejeitar tais informações. É ainda mais fundamental se alguém quiser aceitar tais informações. Então, dentro do meu conhecimento, os casos citados por Almeida et al, dentro dos fenômenos por eles apresentados (EQM, EFC, CORT, mediunidade, aparições) possuem uma variação muito grande no seu peso empírico, por assim dizer. Há casos de valor e peso fortíssimo. Há casos fracos. E há também casos que foram citados, lamentavelmente, de modo errado e inválido por Almeida et al. Uma exemplificação e caracterização mais esmiuçada desses pontos será por mim apresentada na análise que farei em futuro breve (se Deus quiser  ) sobre o livro de Almeida et al.

 

Gontijo et al a seguir fazem uma afirmação interessante, e, como de muitas vezes, potencialmente fértil: “Em segundo lugar, os achados cientificamente mais surpreendentes citados pelos autores podem ser contrastados com achados nada surpreendentes que eles não citam”. Tendo fortemente a concordar com essa frase de Gontijo et al, pelo menos dentro do que eu entendo dela. Ou seja, há um histórico de “insucessos” nessa área que simplesmente tem que ser plenamente relatado (e incorporado nas análises de tais fenômenos). Concordo que Almeida et al não atenderam a esse quesito, se isso for um ponto que Gontijo et al queiram dizer com a frase deles logo acima. Porém há um outro ponto talvez presente na frase de Gontijo et al com o qual não concordo tanto... Se há, por um lado, um punhado de dados surpreendentes, e, por outro lado, uma vastidão de dados não surpreendentes, isso não quer dizer que os dados surpreendentes sejam inválidos. Isso pode até significar que tais dados surpreendentes, apesar de raros, justifiquem pesquisas mais a fundo, e até mesmo que justifiquem, já, talvez não uma mudança de paradigma em si (mudança da visão predominante na Ciência, digamos), mas pelo menos uma maior abertura com relação ao que cremos saber e ao que cremos não saber nessa área. Há que se olhar com muita cautela e riqueza de detalhes os fenômenos específicos em questão. Mas me parece que os melhores casos de crianças que alegam lembrar de vidas passadas (algo em torno de uns 50 casos, imagino; o total de casos estudados pelos diversos pesquisadores da área chegam a uns 3000, naturalmente com grande variação de peso evidencial), os melhores casos de EQM, e os melhores casos de mediunidade (em especial o caso Leonora Piper) se enquadrem nesse cenário para o qual estou chamando a atenção.

 

A seguir Gontijo et al afirmam: “a literatura científica sobre o tema é bastante inconsistente”. Imagino que eles queiram dizer que há um grau significativo de incoerência nos dados científicos que constam da literatura em questão, a ponto de causar um bom grau de “desnorteamento” em quem se debruce sobre o tema. Aí Gontijo et al citam dois conjuntos de problemas: conflito entre meta análises e conflito entre estudos isolados. Afirmam, no tocante a meta análises: “Por exemplo, embora a meta-análise mencionada (Sarraf et al., 2021, p. 396) tenha encontrado evidências ‘que apoiam a hipótese de que alguns médiuns podem recuperar informações sobre pessoas falecidas por meios desconhecidos’, outra meta-análise do mesmo ano (Rock et al., 2021) não as encontrou”. O grupo de Alexander et al fez já uma avaliação desta meta-análise onde houve resultado negativo, e publicaram em 30 de dezembro de 2022 (Silva, Julio. Moreira-Almeida, Alexander. Controlled Experiments Involving Anomalous Information Reception with Mediums: An Analysis of the Methods Applied in Recent Studies . Journal of Scientific Exploration. Vol. 36, No 4 – Winter 2022). Eles citam em um trecho: “Recent studies into the occurrence of AIR have produced divergent results, even when applying rigorous methods to control information leakage. A recent meta- analysis found positive results indicative of AIR (Sarraf et al., 2021), while another, employing a smaller number of studies, found negative results (Rock et al., 2021). This points to the need for an analysis of the differences between the various protocols employed in a quest to explain the discrepancies and help to move the field forward”. O que importa nesse ponto é, pelo menos em parte, justamente o que Gontijo et al ressaltaram: há controvérsias. Mas conhecer tais controvérsias é de um valor imenso. De fato, por um lado o fato de haver controvérsias afasta a Ciência de tomar uma posição, de chegar a um veredicto sobre o caso. Por outro lado, para aqueles que tenham o interesse e o fôlego de se debruçar sobre a controvérsia (essa específica, e muitas outras similares), há uma fonte de riqueza imensa em termos intelectuais, conceituais, e paradigmáticos. Por vezes encontramos argumentos e dados de alta qualidade em “ambos os fronts”, por assim dizer. Eu mesmo já me encontrei em uma situação de quase “esquizofrenia epistemológica” ao me ver simplesmente compelido a concordar solidamente com dois artigos diametralmente opostos, escritos por dois contendores 100% discordantes entre si, Jessica Utts (pró paranormalidade) e Ray Hyman (contra paranormalidade). A riqueza de tal experiência é simplesmente inenarrável.

 

Ainda seguindo essa linha que iniciei a descrever no parágrafo anterior, Gontijo et al exemplificam contradições entre trabalhos não meta-analíticos (entre estudos isolados): “Naturalmente, estudos isolados que corroboraram esse poder mediúnico (e.g., Beischel; Schwartz, 2007; Beischel et al., 2015) podem ser pareados com aqueles cujos médiuns testados não demonstraram poder algum (e.g., Jensen; Cardeña, 2009; O’Keeffe; Wiseman, 2005)”. Novamente, faz-se necessário conhecer com detalhes tais trabalhos, e contrastá-los o melhor possível. Sim, tais incoerências afastam a Ciência de um veredicto. Por outro lado, isso deveria justamente tornar o debate mais digno de respeito e atenção. E me parece que, de fato (como eu já disse anteriormente), essa é a postura de Gontijo et al, de ver com respeito tais estudos se forem bem conduzidos e bem analisados.

 

Em um ponto a seguir, discordo, a princípio (e friso que isso é um preconceito meu, ou seja, um pré conceito!) de Gontijo et al. Eles citam que “a mediunidade de Leonora Piper e de Chico Xavier não convenceu todos aqueles que os investigaram (Lamont, 2017; Mori, 2010)”. Claro, não convenceu todos. Mas o que quero dizer não é isso. Tenho uma certa convicção (convicção de quem não estudou muito esse caso específico...) que não há bons dados embasando uma possível paranormalidade de Chico Xavier. Por outro lado, com relação a Leonora Piper, minha posição é radicalmente oposta (e, também, sem ainda ter estudado o caso...). Acredito que Piper seja de fato merecidamente o “White Crow” (o corvo branco, a exceção à regra que prova um fato de modo definitivo) de William James. Mas... não posso afirmar de fato isso antes de estudar o caso. E é um caso bem trabalhoso de estudar... Enfim. Estudarei. Nos anos a seguir. Se Deus quiser  .

 

Com relação aos casos de crianças que alegam lembrar de vidas passadas, Gontijo et al, a meu ver, se pegam em alguns pontos não pertinentes. Temos inclusive que ter em mente que nem todos esses casos envolvem sinais de nascença presumivelmente oriundos da encarnação anterior (admitindo-se que se trate de fato de algum tipo de reencarnação). Também o fato dos casos não ocorrerem de modo similar nas diversas culturas humanas não é, necessariamente, um problema. Igualmente, o caso de tais crianças serem mentalmente “normais” ou não é de relevância secundária. Claro, se um pesquisador (Almeida et al, por exemplo...) faz afirmações erradas a respeito de tais casos nesses quesitos citados, então isso é sim um problema. Pelo menos um problema para a credibilidade do pesquisador específico, e/ou do grupo ao qual ele está ligado. O mais importante nesse fenômeno é se há uma quantidade mínima aceitável de casos com bom peso empírico apoiando a hipótese de reencarnação. Sou fortemente inclinado a achar que há sim. Mas isso não é um veredicto, não é um “bater de martelo”, e sim um “início de conversa”.

 

Gontijo et al citam então que “a revisão de Kirschnick et al. (no prelo) constatou que a força ou a qualidade das evidências desses achados costuma ser baixa”  (ou seja da correspondências entre marcas de nascença ou defeitos congênitos na “encarnação atual” e ferimentos graves ou fatais na “encarnação anterior”). Sem dúvida esse tipo de artigo de Kirschnick et al é, a princípio, altamente enriquecedor e indispensável. inclusive uma resposta a tal artigo, do autor James G. Matlock (Birthmarks and birth defects in the head and neck region and claims of past-life memories: Cases in Ian Stevenson’s Reincarnation and Biology. - James G. Matlock, Explore, https://doi.org/10.1016/j.explore.2023.10.011). Enfim, a meu ver, novamente, mais um caso de rica polêmica, e não de veredictos ditatoriais em uma direção ou outra.

 

Um penúltimo ponto abordado por Gontijo et al se refere às EQMs. Citam: “Por fim, a literatura científica sobre EQMs e experiências extracorpóreas parece ser igualmente inconsistente e controversa”. Essa é, deveras, uma situação incômoda... Eu diria mesmo que há um dolorido manancial de verdade por trás dessa reclamação de Gontijo et al. Dolorido para todos nós que nutrimos um desejo tanto de sobreviver à morte quanto de, quiçá, nos reencontrarmos com nossos entes queridos que já se foram. Eu descreveria a situação da seguinte maneira: quem quer que estude a fundo a obra de Kardec, fica (penso eu) com a nítida impressão que, à época de Kardec (tipo, anos 1860/1870), havia uma certeza bem clara quanto à inequívoca e farta comprovação e aceitação iminente da vida após a morte por parte da Ciência e da Humanidade. Inclusive, aquilo que agora fazemos com celulares era para ter sido já iniciado nas últimas décadas do século XIX através de comunicações mediúnicas de alta fidelidade... A realidade se mostrou muito, muito diferente desta expectativa. E para piorar o quadro (penso eu), o fenômeno não foi de fato refutado, as evidências não foram descartadas ou provadas falsas. A anomalia persiste, sugestiva de algum modo de sobrevivência à morte. E persiste de um modo que não é fruto de fraude, de má observação ou de mal relato, ou fruto de mecanismos conhecidos pela Ciência nem de antigamente e nem de agora. Mas persiste de um modo incômodo, intermitente, não muito confiável (com regras não muito bem conhecidas ou controladas), e fraco (ou aparentemente fraco). Não sabemos o que é isso. Mas, incomodamente, sabemos que isso é! (ou seja, que isso existe. Claro, existem os que discordam, a esmagadora maioria por desconhecer as evidências, uma certa quantidade por desonestidade intelectual quanto aos dados, e uma minoria respeitável por discordar da interpretação dos dados). O que aconteceu com relação à mediunidade se repetiu, surpreendentemente, com as EQMs. Nós que vivemos (pela mídia de então, no meu caso a partir de 1978) o momento quando o assunto veio vigorosamente à baila com os livros de Raymond Moody Jr., e logo a seguir com os estudos de Kenneth Ring, Bruce Greyson, Michael Sabom e alguns outros, não tínhamos dúvida que as EQMs seriam uma fonte clara e inequívoca de informações sobre algum tipo de funcionamento da mente independente do cérebro. Contudo, novamente, as coisas se desenvolveram de um modo muitíssimo diferente disso (e para mim especificamente, isso foi uma forte fonte de decepção e até de grande tristeza mesmo). E, novamente, se manteve um grau inequívoco (ainda que pouco freqüente, fraco, etc) de... anomalia. A “inconsistência” (incoerência) e controvérsia à qual Gontijo et al se referem na verdade é essa: o fenômeno não era o que esperávamos, não era o que imaginávamos, possui dinâmica e características que beiram as raias do ininteligível e do indomável. Mas a “droga” do fenômeno existe, está lá, e sugere, pelo menos levemente, a possibilidade de sobrevivência pós morte. Conhecer e relatar o fenômeno o mais fidedignamente possível é uma etapa indispensável para se tentar avançar na compreensão do mesmo. E, infelizmente, tanto os ditos “céticos” quanto os ditos “proponentes de interpretações sobrevivencistas” muitas vezes pecam grandemente nesse quesito. Precisamos de menos “ceticismo” e de menos “proponência® (perdoem o neologismo  ) e de mais honestidade intelectual. E coragem frente à dor inerente a esse conjunto de questões e a tudo que elas implicam. Gontijo et al incluem a seguir: “Além disso, quando revisitados por céticos, relatos de EQMs e outras experiências extracorpóreas podem se revelar incoerentes e/ou exagerados (e.g., Wiseman, 2017)”. Novamente, muitíssimos dos ditos “céticos” são fortemente desonestos intelectualmente. Vejo Wiseman com enorme suspeição... Sua competência e conhecimento são extremas. Seu compromisso com a honestidade intelectual, por outro lado, é algo pelo qual eu não ponho minha mão no fogo. Mas... isso não invalida o que ele fale. Há que se conhecer com detalhes e cuidado as posições de Wiseman. E contrastar com a posição dos seus contendores.

 

Praticamente ao fim da resenha, Gontijo et al citam um artigo de Bruce Greyson sobre EQMs, de 2013. Greyson é, a princípio, um defensor da hipótese sobrevivencista. Segundo Gontijo et al: “Em um tom bastante ponderado, o autor conclui que as pesquisas têm ‘oferecido evidências indiretas que apoiam os três paradigmas da etiologia da EQM (ou seja, os paradigmas psicológico, neurofisiológico e transcendental), mas não há qualquer evidência direta de nenhum deles até o momento’ (p. 267)”. Essa afirmação de Greyson chega a ser pelo menos minimamente bizarra, à luz de diversas coisas que ele afirma neste mesmíssimo artigo... Exemplo 1: “Ring e Cooper (1997, 1999) relataram 31 casos de indivíduos cegos – alguns cegos de nascença – que experienciaram percepções visuais precisas de objetos e eventos durante suas EQMs”. Exemplo 2 (sobre o caso Pam Reynolds): “Sabom (1998) observou que enquanto essa mulher estava morta, como mostravam o EEG silencioso, a ausência de resposta do tronco cerebral e a falta de sangue no cérebro, ela teve a mais profunda EQM de todos os pacientes de seu estudo; sua EQM atingiu o escore de 27 pontos na Escala de EQM, quase 2 desvios-padrão acima da média para os experienciadores de EQM”. Exemplo 3 (ainda sobre o caso Pam Reynolds...): “Não pode ser explicado pela reconstrução baseada nas conversas gerais durante a cirurgia, porque os fones moldados que estavam em seus ouvidos bloqueavam qualquer audição possível, e não havia respostas de seu tronco cerebral para estimulação auditiva” (ou seja, de novo: mortinha da silva). Aí temos aquele trecho anterior com uma fala “cautelosa” por parte de Greyson citado por Gontijo et al no início deste parágrafo, e temos também esses outros dois trechos igualmente “cautelosos” (ou... bizarros) que Greyson afirma antes do trecho citado por Gontijo et al: “A pesquisa da etiologia das EQMs continua prejudicada pela dificuldade na obtenção de evidências diretas que apoiem as hipóteses plausíveis, em parte devido à ocorrência imprevisível da experiência”. E também: “Estudos de visões fora do corpo supostamente precisas que foram, por vezes, relatadas por experienciadores de EQMs, ficaram comprometidas por sua dependência das observações aleatórias de experienciadores enquanto estavam, segundo dizem, fora de seus corpos, o que pode ser difícil de verificar ou de avaliar de modo retrospectivo”.

 

Então vejam que quadro quase desesperador diante de nós. De um lado temos 31 cegos com percepção visual correta durante suas EQMs, somado a uma mulher mortinha da silva com score altíssimo (Record!) na escala de profundidade da EQM, somado a essa mesma mulher sem atividade no tronco cerebral durante essas vivências profundas. Um verdadeiro The Walking Dead. Por outro lado temos “ausência de evidências diretas” (o que seria tal evidência? Uma tunda no meio da fuça dado pelo espírito no pesquisador chatinho?... Há inclusive, em inglês, um acrônimo para isso: IOTT), a dificuldade de evidências diretas devido à fortuidade do evento EQM (imaginem se o evento fortuito de eu acertar na loteria dificultasse a evidência direta do dinheiro na minha conta...), e aí as visões passam a ser “supostamente precisas” baseadas em “observações aleatórias”, e tudo isso palavras do Greyson! (e para não piorar o sururu, eu não vou nem citar que, na versão mais recente kindle desta mesma obra, Greyson ainda acrescenta os seguintes dados confundidores: “In a recent review of 93 reports of out-of-body perceptions during NDEs, 86% were corroborated by an independent informant - Holden, 2009. Of these out-of-body perceptions, 92% were completely accurate, 6% contained some error, and only 1% were completely erroneous).

 

Não, eu não estou citando isso tanto para realçar potenciais forças do conjunto de fenômenos em si nas EQMs (inclusive, o caso do Esquadrão G.I. Joe dos 31 Cegos Snipers e o da Mortiça Rebelde possuem diversos detalhes complicadores, nem todos devidamente citados nas duas versões do artigo de Greyson no Varieties of Anomalous Experience...). Estou citando muito mais para enfocar o aspecto estranho e talvez indevidamente confundidor do relato dos próprios pesquisadores/pensadores principais desta área de investigação. Isso torna muito mais difícil para quem não tenha estudado mais a fundo tais fenômenos a devida aquilatação de afirmações mais “vanguardistas” como as feitas por Almeida et al no livro em foco (e nem estou dizendo que eu concorde com as afirmações vanguardistas de Almeida et al). Gontijo et al, praticamente ao fim da sua resenha, afirmam, contrastando o livro e a postura de Almeida et al com o artigo e a postura de Bruce Greyson: “Não encontramos essa mesma ponderação nos capítulos finais de ‘Ciência da vida após a morte’. Por exemplo, após criticarem as hipóteses parapsicológicas para explicar os fenômenos anômalos supracitados, eles concluem que ‘não há candidato a paradigma concorrente [ao dualismo] que seja igualmente bem apoiado por evidências empíricas e capaz de explicar todos os fatos juntos’ (p. 77)”. Então a meu ver o problema neste caso é que não estamos de fato diante de ponderação nas afirmações de Greyson, ou de grave falta de ponderação nas colocações de Almeida et al. Estamos, isso sim, diante de afirmações, em ambos os casos, um tanto quanto descompassadas com a devida aquilatação da base de dados oriunda dos fenômenos EQM.

 

Ainda assim, um ponto fundamental a destacar nessa questão é que Almeida et al de fato acabam adotando uma postura mais cautelosa na parte de Conclusão do livro, naturalmente não na página 77, mas na página 85: “Para avançar em uma discussão acadêmica rigorosa sobre a sobrevivência da consciência, além de uma divulgação mais ampla do que já se sabe, é fundamental apoiar o desenvolvimento e uma competição darwiniana de programas de pesquisa (Moreira-Almeida &Araujo, 2017). Esses programas de pesquisa não apenas desenvolveriam candidatos a paradigmas para dar conta de todo o corpo de evidências, mas também os testariam sob uma diversidade de estudos empíricos de alta qualidade com abordagens metodológicas diferentes, mas complementares (Chibeni & Moreira-Almeida, 2007; Moreira-Almeida & Lotufo-Neto, 2017)”. Pelo menos a meu ver, a menção explícita a “desenvolvimento de candidatos a paradigmas para dar conta de todo o corpo de evidências” indica claramente a necessária abertura para explicações alternativas. Não posso deixar de finalizar essa reflexão sobre a resenha de Gontijo et al com uma constatação de que, ao que me parece, Gontijo e Almeida concordam no que de fato importa: Almeida aberto para um paradigma monista, se esse explicar melhor os fenômenos. E Gontijo aberto para um paradigma dualista, se esse explicar melhor os fenômenos.

 

Um último comentário ao trecho final da resenha de Gontijo et al. Eles afirmam: “Como esperamos ter demonstrado nesta resenha, a literatura científica está longe de apoiar consistentemente esse tipo de conclusão – e crer no contrário é, na nossa opinião, o maior equívoco dos autores”. O trecho completo ao que Gontijo et al se referem é o seguinte: “Não há candidato a paradigma concorrente que seja igualmente bem apoiado por evidências empíricas e capaz de explicar todos os fatos juntos. Esta tem sido a conclusão a que chegaram muitas (provavelmente a maioria) mentes científicas e filosóficas altamente qualificadas (de diversas origens intelectuais e geográficas) que, meticulosamente, desenvolveram e publicaram análises abrangentes das evidências disponíveis para a sobrevivência”. E logo a seguir, Almeida et al colocam uma lista de pensadores e pesquisadores que endossariam tal posição, em diversos países do mundo, ao longo de diversas décadas. O ponto importante é que Almeida et al não disseram que haja apoio consistente (coerente, invariável ou quase invariável). Eles disseram que se trata de provavelmente a maioria. Ou seja, provavelmente, digamos, 51%. E eles ainda estão abertos para que seja menos que isso, menos que 50% (já que disseram provavelmente a maioria). Então, novamente, a meu ver eles não estão discordando de Gontijo et al.

 

Muito do estudo nessa área é, ou deveria ser, norteado pela máxima segundo a qual O Diabo se Encontra nos Detalhes... E por vezes a maneira como alguns pensadores deixam passar despercebidos alguns dos tais detalhes parece revelar algo sobre os pensadores em si, seus viézes e antipatias... E me parece que, naturalmente, isso pode ser observado em Almeida et al, em Gontijo et al, e mesmo em “Júlio e tal”. 

 

 

Julio Siqueira, 12 de dezembro de 2023.