Esta
reflexão está sendo feita originalmente para apresentação no grupo de WhatsApp do ECAE (grupo
de Estudos Científicos Avançados sobre Espiritismo, criado pelo pesquisador
Vitor Moura), no grupo de Telegram do IPA+ (Instituto
Ponto Azul, criado pelo psicólogo Daniel Gontijo), e no meu site Criticando
Kardec.
Contexto
desta reflexão
Já
de muitos anos que tenho um interesse visceral na questão de nossa possível
sobrevivência após a morte. Esse interesse, em décadas mais recentes, resultou
em um estudo meu, entre os anos de 1997 e 2002, da obra de Allan Kardec,
levando à criação do site Criticando Kardec em 2002. Logo posteriormente,
me aprofundei muito em questões da Parapsicologia, notadamente “telepatia”
testada sob o protocolo Ganzfeld, “psicocinese” estudada sob o programa de pesquisa MicroPK (capacidade de
influência da mente humana sobre geradores de números aleatórios), e casos
de crianças que alegam lembrar de vida passada (como estudados pioneiramente
por Ian Stevenson, com o nome/acrônimo CORT, “cases of
the reincarnation
type”). Me aprofundei também bastante em NDE/EQM
(experiências de quase morte) e OBE/EFC (experiência fora do corpo). Meu aprofundamento
no fenômeno da “mediunidade” foi o de menor fôlego, em grande medida se limitando
à leitura atenta do livro “Immortal Remains”, de Stephen Braude.
Entre 2002 e 2008, reuni (tive contato com, através da literatura relevante,
e em intensos debates na internet) um conjunto a meu ver impressionante de
evidências favoráveis à hipótese da sobrevivência após a morte, bem como reflexões
e ponderações aprofundadas e embasadas apoiando tal hipótese (subsidiariamente,
me aprofundei também muitíssimo na questão do “ceticismo” e do “ceticismo
moderno organizado”). Foi então que, por volta do ano de 2008, eu... empaquei!
Todo e qualquer estudo adicional a essa questão me pareceu, em grande medida,
irrelevante e incapaz de levar a conclusões confiáveis. A coisa chegou ao
seguinte extremo: imaginem que a Ciência descobrisse que temos de fato um
“corpo sutil” feito de alguma substância recém identificada (como a moderna
“matéria escura” ou algo similar) e que esse corpo sutil reside no cérebro,
reproduz a estrutura cerebral e opera processamentos de informações e pensamentos,
em grande medida na verdade dirigindo o cérebro, e que tal corpo sutil é depositário
(ou... é local de cópia de) nossos processos de pensamento, de memória, e
de características de personalidade. E que tal corpo sutil sobrevive à morte.
Não tenho a menor dúvida que em um quadro desses quase todos os céticos e
ateus materialistas do mundo seriam convertidos de imediato e passariam a
acreditar na vida após a morte, na nossa sobrevivência ao fenômeno da morte
física. Bem, eu não... Eu, que não sou ateu materialista, eu que acredito
(acredito no sentido de que minha intuição e minha emoção me dizem que essa
é a verdade) na minha e na nossa sobrevivência pós morte,
eu continuaria não achando que podemos ter certeza de nossa sobrevivência
pós morte, em termos científicos e racionais. O motivo de minha dúvida, e
de meu fortíssimo “empacamento” (paralisação epistemológica...),
é a questão da consciência! A questão da consciência passou a ser para mim
o centro de tudo, e me parece, na melhor das hipóteses, beirar as raias da
insolubilidade. De forma resumida, minha saga poderia ser descrita como eu
inicialmente crendo fortemente haver evidências da sobrevivência, eu depois
sabendo e conhecendo farto material evidencial
indicativo da sobrevivência após a morte, e eu por fim passando a duvidar
até da... sobrevivência antes da morte! Isso é um papo longo e convoluto.
Para efeitos deste texto meu, cabe apenas eu dizer que, agora, em 2023, estou
voltando a me debruçar sobre essas questões. E, naturalmente, estou... enferrujado.
Mas não estou morto.
. Estou retomando essas questões em primeiro lugar para dar continuidade
ao meu caminho através delas. Em segundo lugar, estou retomando tais questões
para colocar em forma de livro meu site Criticando Kardec (com vistas a dar
uma visibilidade mais digna a esse material que me parece de um valor fundamental,
e que é muito desconhecido; o grupo do Alexandre Moreira Almeida, por exemplo,
parece desconhecê-lo por completo). Nesse contexto, algumas obras de revisão
do tema se mostram como indispensáveis em um primeiro momento de retomada
de estudos. O livro “Immortal Remains”, de Stephen Braude,
é uma delas, bem como o livro “Mediumship and Survival”, de Alan
Gauld. E, também, esse livro recente do Alexandre
Moreira Almeida e colaboradores, “Ciência da Vida Após a Morte”. Nesse sentido,
li e estou estudando tal livro. E também estou estudando resenhas a ele que
pareçam enriquecedoras para o debate. Então é nessa perspectiva, de reflexão
e tentativa de avanço do entendimento, que analiso agora a resenha feita por
Daniel e Natacha Gontijo a esse livro.
Análise
da Resenha
A resenha
de Daniel e Natacha Gontijo ao livro de Alexander Almeida e colegas foi publicada
na revista Interações, da PUC de Minas (Interações, Belo Horizonte, Brasil,
v. 18, n. 02, e182r01, p. 01-08, jul./dez. 2023). Nela, o livro em questão
é citado logo no início da resenha como Moreira Almeida, Alexander;
Costa, Marianna Abreu; Coelho, Humberto Schubert.
Ciência após a morte. Belo Horizonte: Ampla, 2023. n° p. 96. Me parece
que houve um erro menor ao expor o título como apenas Ciência após a
morte, em vez de Ciência da vida após a morte. Minha visão geral
com relação a essa resenha de Gontijo&Gontijo
é de que é um texto interessante (enriquecedor para a reflexão sobre a questão),
que acerta em muitas das críticas, e que possui uma perspectiva construtiva
e socialmente benéfica ao afirmar a validade de tais estudos de possíveis
evidências científicas embasadoras de algum
tipo de sobrevivência do ser humano à morte. Vejo, contudo, alguns problemas
também, como pontos mal identificados, críticas não tão bem direcionadas,
e conclusões em alguns pontos talvez equivocadas. Ressalto que minha posição com relação ao livro de Alexander e colaboradores
é, também, de muita crítica, digamos. A meu ver há muitos problemas
na obra, e isso mesmo sem eu ainda ter feito uma análise minuciosa das fontes
citadas no livro (e tal análise é indispensável para uma crítica mais além;
muito provavelmente virei a fazer tal análise, em diversos dos estudos citados
por eles). Refletirei então a seguir sobre diversos pontos específicos da
resenha Gontijo&Gontijo.
Os
autores da resenha começam descrevendo a proposta e a pergunta central, por
assim dizer, do livro: “É possível investigar cientificamente a hipótese
de que a consciência sobrevive à morte do corpo?”. Esse por si só já me
parece um modo muito problemático de colocar a questão, e tanto os autores
do livro (doravante Almeida et al) quanto os
autores da resenha (doravante Gontijo et al) se deixam, a meu ver, atolar
nessa areia movediça conceitual que envolve os termos consciência, mente,
alma, personalidade, espírito, etc. Muitos autores incorrem em problema
similar. A meu ver, a princípio, sobrevivência da mente é algo radicalmente
diferente de sobrevivência da consciência (e, inclusive, um pode, hipoteticamente,
sobreviver e o outro não, e vice versa). Uma boa definição e distinção de
tais termos é fundamental pra se discutir possíveis
sobrevivências após a morte.
Um
ponto a seguir é como Gontijo et al descrevem
e abordam o capítulo 2, “A ideia da sobrevivência
da alma na história das religiões e na filosofia”. O capítulo é, em parte,
descrito por Gontijo et al como apresentando endosso
de intelectuais ao dualismo, e Gontijo et al afirmam: “Embora eles tenham
sido bem-sucedidos nisso, notamos um exagero aparentemente seletivo na forma
elogiosa com que eles mencionam teóricos dualistas”. Nesse ponto, Gontijo
et al ressaltam que os teóricos do “dualismo”
recebem adjetivos lisonjeiros no livro (como por exemplo o físico Henry
Stapp), enquanto os não dualistas não são tratados
do mesmo modo. Citam: “Darwin é introduzido apenas como... Darwin (p. 14)”.
Aí afirmam: “Obviamente, nosso incômodo não reflete a ausência de louros
endereçados aos monistas, mas ao excesso de honrarias
concedidas aos dualistas – as quais, no nosso entendimento, flertam com o
apelo à autoridade e podem confundir os espíritos menos versados em Filosofia”.
Há,
a meu ver, alguns problemas nessa abordagem de Gontijo et al. Acho que esse capítulo de Almeida et al é muito
problemático de fato, com muitos pontos a meu ver ruins, ou negativos, ou
contraproducentes. Explicarei melhor isso em minha análise ao livro em si,
que farei somente daqui a alguns dias e/ou semanas (ou meses...). Em todo
o caso, eu descreveria o capítulo, e seus objetivos, de um modo um tanto
quanto diferente de como descreveram Gontijo et
al. Me parece que um objetivo do capítulo é mostrar que a crença no dualismo
(onde haveria espaço para almas, ou espíritos, ou coisas similares) não é
algo frágil intelectualmente. Esse ponto inclusive Gontijo et al haviam ressaltado um pouco antes na resenha.
Mas além desse ponto de partida inicial, Almeida et
al parecem querer desenvolver a tese de que o dualismo sempre foi a regra
do pensamento humano, por assim dizer, enquanto a negação da possibilidade
de “algo transcendente” (que Gontijo et al chamam de monismo) seria um desenvolvimento
recente fruto principalmente de um descaminho do pensamento científico
ocidental nos últimos 150 anos mais ou menos. É uma tese ousada. E a meu
ver errada. E simplória... Mas, sim, é defensável e potencialmente enriquecedora
para o debate e para o entendimento dessas questões. Daí vem a reclamação
de Gontijo et al da ausência de elogios aos não
dualistas, ou aos monistas. No fundo, me parece
que Gontijo et al estão justificados nessa reclamação.
Contudo, o exemplo usado não me parece adequado, pois que Darwin foi citado
em um ponto mais estritamente técnico-científico, diferentemente de Stapp e outros (dualistas), que foram citados em um trechos mais ideológico-políticos
(inclusive Darwin nem pode ser descrito apropriadamente como monista... Nem mesmo em seus anos de vida finais).
Os termos finais de Gontijo et al nesse ponto
possuem um certo grau de verdade, ou seja, o alerta que fazem na resenha
contra um possível apelo à autoridade por parte de Almeida et al. Há, a meu
ver, um grau preocupante disso no capítulo 2. Contudo, a frase mais ao final
desse trecho que eles escolhem usar, ao dizerem que isso pode “confundir
os espíritos menos versados em Filosofia”, é um pouco problemática. Seria,
neste ponto, interessante Gontijo et al citarem
que Filosofia e que filósofos, e como, se oporiam à tese geral de Almeida
et al no capítulo 2. Poderiam, por exemplo, citar dois filósofos monistas (ateu materialistas) influentes de entre
os séculos, digamos, X e XVIII. Então, nós leitores menos versados em Filosofia
ficamos no aguardo dessa contribuição de Gontijo et al...
Aí
Gontijo et al passam a se debruçar sobre o capítulo
3, e o descrevem como “O terceiro capítulo é dedicado a criticar alguns
argumentos neurocientíficos a favor do monismo”.
Esse não é o objetivo do capítulo. O objetivo deste terceiro capítulo é
refutar as principais objeções à hipótese da sobrevivência. Os “argumentos
neurocientíficos” são apenas um dos pontos abordados,
ainda que de importância nevrálgica (figurativa e literalmente
). Vou reproduzir três trechos estreitamente relacionados entre si dessa
parte da resenha de Gontijo et al (tanto em termos
de ideias quanto em termos de proximidade física no corpo do texto) e a seguir
tecerei algumas considerações:
1-
“A despeito de seu apelo intuitivo, essa hipótese do cérebro instrumental
sugere a existência de variáveis (espirituais) aparentemente irrelevantes para compreendermos o comportamento humano”.
2-
“Sendo ainda mais específicos, tal como a seleção natural explica satisfatoriamente
a origem das espécies sem invocar divindades (Plantinga;
Dennett, 2022), parece não ser necessário adicionar
espíritos aos modelos teóricos que explicam a origem da consciência (Damásio,
2000). Mas, segundo os autores, a existência de experiências anômalas que
desafiam teorias monistas justificaria a consideração
científica da hipótese de que mente e corpo são substancialmente distintos”.
3-
“Embora haja vários tipos de dualismo, optamos por utilizar esse termo a
fim de tornar a linguagem mais parcimoniosa. Daqui em diante, ‘dualismo’
e ‘dualista’ significam, respectivamente, a ideia
de que a existência da mente/consciência não depende do corpo/cérebro e
aquele que acredita nessa ideia. Em oposição,
‘monismo’ e ‘monista’ significam, respectivamente,
a ideia de que a existência da mente/consciência
depende (ou faz parte) do corpo/cérebro e aquele que acredita nessa ideia”.
Esse
terceiro trecho apenas mostra a definição usada por Gontijo et al para os termos monismo e dualismo, e monista e dualista. No primeiro trecho, eles citam
a hipótese do cérebro instrumental, defendida, digamos, por Almeida et al. Por essa hipótese o cérebro não produziria a
mente e a consciência, e sim “meramente” transmitiria ou filtraria tal mente/consciência,
assim como uma televisão não produz as imagens, apenas as transmite. O ponto
importante que eu gostaria de ressaltar é que tal hipótese não surgiu do
nada. Há um bom grau de embasamento, um bom grau de necessidade, um bom grau
de vazio explicativo nos modelos mais aceitos pela Ciência Predominante (Mainstream Science) que
levam alguns pensadores a cotejarem a possibilidade de tal hipótese ser
válida. Um livro que esmiúça essa questão, e que li com grande cuidado e
resenhei e debati intensamente (tenho muitos textos no meu site Criticando
Kardec sobre isso) foi o livro “Irreducible Mind”. Abaixo, links para tais discussões, em inglês
(o leitor interessado que não conheça inglês adequadamente pode usar o tradutor
do Google). Esse livro foi produzido pelo grupo do pesquisador Edward F.
Kelly.
https://www.criticandokardec.com.br/amazon_reviews.htm#kelly
https://www.criticandokardec.com.br/irreducible_mind.htm
https://www.criticandokardec.com.br/irreducible_skepticism.htm
https://www.criticandokardec.com.br/dieguez_vs_jime.htm
O grupo
de Edward Kelly produziu posteriormente o livro “Beyond
Physicalism”, e há uma obra mais recente deles
nessa linha também (“Consciousness Unbound”). Não se tratam de questões quaisquer. São
pontos altamente interessantes, ricos, válidos, e potencialmente necessários.
Pessoalmente, vejo muitos problemas na “hipótese do cérebro instrumental”.
Mas o fato é que a Ciência é repleta de pontos na verdade mal explicados
onde se acredita, erroneamente, que já atingimos plenitude de conhecimento.
Gontijo et al citam que a seleção natural explica
satisfatoriamente a origem das espécies. Não sei de onde eles tiraram isso
(Plantinga/Dennett...),
mas a realidade é muito longe disso. E estou me referindo estritamente ao
conhecimento predominante (“mainstream”) na Biologia
Evolutiva atual. Não, ninguém recorre ou especula sobre deuses ou espíritos
nisso. Mas a frase usada por Gontijo et al não bate com o que se conhece
(Pirula confirmará de pronto!). Pior ainda é
dizer que parece não ser necessário adicionar espíritos aos modelos teóricos
que explicam a origem da consciência (Damásio, 2000). Que modelos teóricos?
Como se houvesse algum minimamente satisfatório...; mas, sim, alerto que
essa é uma posição minha. Dennett por exemplo
parece ainda acreditar piamente no “modelo” dele de “heterophenomenology”. Me engana que eu gosto...:
https://www.criticandokardec.com.br/amazon_reviews.htm#albusdumbledennett
E apesar
de, de fato, Damásio, na obra citada por Gontijo et
al (“O Mistério da Consciência”), não chegar a bater atabaque para evocar
entidades explicativas dos processos de funcionamento do cérebro que seriam
responsáveis pela geração da consciência, ele não só deixa claro a lacuna
explicativa ainda existente nesse mister (página 25: “Acredito que essas
qualidades” – qualia – “serão um dia explicadas
pela neurobiologia, embora nesse momento a explicação biológica seja incompleta
e lacunar”) como indica fontes de crítica devastadora ao “monismo” (página
425 “Para um exame crítico pertinente, ver J. Levine, ‘Materialism and Qualia: the Explanatory Gap’ ”; Levine
foi, por assim dizer, o precursor do “dualismo” de David Chalmers inaugurado no livro “The Conscious Mind”) e ainda tece comentários respeitosos à abordagem
justamente de um dos “dualistas” que Gontijo et al reclamaram quanto aos
elogios recebidos de Almeida et al (página 426, onde Damásio afirma considerar
o trabalho do físico Henry Stapp como pertinente
à elucidação da base física do problema dos “qualia”).
Então nesse ponto a citação feita por Gontijo et
al, além de indevida (por minimizar o tamanho da lacuna explicativa na questão
consciência-corpo), é também indutora de erro (ao descaracterizar a verdadeira
posição de Damásio de um modo mais geral na obra citada, e levar os leitores
da resenha a crer que a visão pacífica neste campo de estudo é, já, digamos,
“não lacunar”).
A seguir,
Gontijo et al passam a se debruçar sobre o quinto
capítulo (“As melhores evidências disponíveis para a vida após a morte”).
Em suas palavras: “Iniciamos a leitura do quinto capítulo com a mente e
o coração abertos. Dezenas de pesquisas interessantes são apresentadas, e
seus achados são claramente compatíveis com a hipótese de que temos um espírito
que sobrevive à morte do corpo. Por outro lado, compatibilidade
teórica não pode ser confundida com consistência científica
e nem sempre envolve evidências de boa qualidade –
e, no nosso entendimento, os autores fazem essa confusão e apresentam muitas
evidências ruins como se fossem razoáveis”.
Melhor
que mente e coração abertos teria sido
mente e coração espertos... Essa área de conhecimento é altamente
matreira, e igualmente o são (naturalmente) aqueles que a estudam, tanto
os que acreditam na sobrevivência pós morte quanto
os que se posicionam contra tal tese. Não só fraude consciente de ambos os
lados (e em diferentes graus, por vezes relativamente sutis), mas má observação,
mau relato, e “deslizes” os mais diversos mais ou menos inconscientes. E
tudo isso em parte motivado por uma miríade de razões mais ou menos válidas,
o que complica tudo ainda mais em termos emocionais e até cognitivos. A meu
ver, adentrar tal seara com o coração aberto é receita certa para a indevida
decepção e rejeição. Logo a seguir, Gontijo et
al usam do termo “consistência científica”. No idioma inglês, há uma tendência
em se usar tal termo (“consistency”) significando
coerência, e fiquei com a impressão que esse é o significado intencionado
por Gontijo et al (em vez de “sólido”, que seria
o significado mais comum para o termo “consistente” em português). Basicamente
Gontijo et al acreditam que Almeida et al apresentaram,
neste capítulo crucial, muitas evidências ruins como se fossem razoáveis.
Isso é uma acusação muito forte, muito grave. E, se possuir algum fundo
de verdade, é, paradoxalmente, uma acusação muito fértil. Gontijo et al deveriam ter dado alguns exemplos dentre as evidências
citadas, e explicar de modo claro e inequívoco porque se tratam de evidências
ruins, e em que sentido são ruins. Assim como a apresentação de tais
evidências por Almeida et al neste capítulo
5 é a verdadeira “alma” da obra em questão, a condenação a tais evidências
feita por Gontijo et al é, igualmente, a “alma” da resenha em questão. E,
lamentavelmente, como costuma acontecer com a grande maioria das “almas”,
a alma da resenha de Gontijo et al acabou ficando...
escafedida (aliás, muitíssimo mais do que a de
Almeida et al!). E é fundamental frisar que além da natureza da evidência
em si (sua descrição o mais fidedigna e completa
possível), existe o outro lado da moeda, praticamente tão importante: como
tal evidência está sendo usada; que tese se tenta defender com a evidência
em questão. O livro de Almeida et al apresenta,
nesse quesito, um certo grau de altos e baixos que me parecem altamente
ricos de serem olhados com atenção, tanto para que façamos avaliações e
críticas que possam ser justas e potencialmente melhorar a obra em si, quanto
para que tais melhorias se estendam a todo esse campo de estudo específico.
A posição de Gontijo et al de meramente dizer
que Almeida et al “apresentam muitas evidências ruins como se fossem razoáveis”,
e dizer isso sem análise, sem justificativa, sem contextualizar o balanço
evidência vs hipótese, se constitui em algo fortemente
contraproducente (além de incorreto no que concerne a talvez a maior parte
dos casos de fato citados por Almeida et al). Muitos leitores da resenha
podem ficar com a impressão equivocada de que Gontijo et al de fato analisam devidamente tais pontos em suas
frases e parágrafos posteriores, mas na verdade eles apenas acrescentam desinformação
e erro de alvo, conforme comentarei a seguir.
Gontijo
et al tentam apresentar uma refutação abrangente
e sólida com o trecho a seguir: “Em primeiro lugar, grande parte dos estudos
citados consiste em relatos de caso. Basicamente,
esse tipo de investigação não é capaz de produzir resultados ou conclusões
generalizáveis (Appolinário, 2012), e tende
a ser bastante deficiente no controle da fraude e de inúmeras variáveis
confundidoras”. O problema grave aqui é que
Gontijo et al de fato parecem sinceramente acreditar
que sabem do que estão falando, quando qualquer pessoa que possua um bom
aprofundamento nesses estudos “sobrevivencistas”
(ou seja, estudos de fenômenos onde os pesquisadores cotejam como explicação
a hipótese da vida após a morte; é comum vermos o termo, em português, sobrevivencialista, seguindo o pareamento do inglês
“survival-survivalist”; mas acho mais apropriado
usarmos, no português, o termo sobrevivencista,
sem letra “l”, seguindo o pareamento sobrevivência-sobrevivencista,
mais de acordo com nosso vernáculo) percebe que eles estão longe de estarem
devidamente inteirados das informações relevantes de modo a poderem fazer
da referência Appolinário 2012 uma fonte apropriadamente
utilizável. A diferença entre diversos dos casos citados por Almeida et al no que tange a profundidade, complexidade, e confiabilidade
de informações chega a ser, em muitas situações, quase astronômica. Almeida
et al me pareceram não ter chamado a atenção para
esse ponto por vezes devido a, talvez, um espírito de “brevidade” e “introdutoriedade” da obra, e por outras vezes devido
a, muito provavelmente, falta de consciência deles próprios quanto a tal
diferença na base de dados do seu livro... E em todas essas situações estamos
falando de relatos de casos. Sim, um caso bem estudado, bem analisado, pode
fornecer insumos científicos de altíssima qualidade, chegando por vezes sim
a ser tão bom ou até melhor do que estudos experimentais. Relato de caso
é basicamente algo que pertence à vertente observacional da Ciência, e não
há de fato primazia da vertente experimental sobre a observacional. O importante
é fazer as coisas do modo certo, descrevê-las posteriormente do modo certo,
e aplicar sobre as informações obtidas o raciocínio apropriado, devidamente
embasado pelo que se conseguiu amealhar. E aí não tem jeito. Temos que olhar
caso a caso, estudo a estudo, e buscarmos o máximo de informação sobre tais
estudos, forças, fraquezas, características, etc. E, claro, isso é fundamental
não apenas se alguém quiser rejeitar tais informações. É ainda mais
fundamental se alguém quiser aceitar tais informações. Então, dentro
do meu conhecimento, os casos citados por Almeida et
al, dentro dos fenômenos por eles apresentados (EQM, EFC, CORT, mediunidade,
aparições) possuem uma variação muito grande no seu peso empírico, por assim
dizer. Há casos de valor e peso fortíssimo. Há casos fracos. E há também
casos que foram citados, lamentavelmente, de modo errado e inválido por
Almeida et al. Uma exemplificação e caracterização
mais esmiuçada desses pontos será por mim apresentada na análise que farei
em futuro breve (se Deus quiser
) sobre o livro de Almeida et al.
Gontijo
et al a seguir fazem uma afirmação interessante,
e, como de muitas vezes, potencialmente fértil: “Em segundo lugar, os achados
cientificamente mais surpreendentes citados pelos autores podem ser contrastados
com achados nada surpreendentes que eles não citam”.
Tendo fortemente a concordar com essa frase de Gontijo et al, pelo menos dentro do que eu entendo dela. Ou
seja, há um histórico de “insucessos” nessa área que simplesmente tem
que ser plenamente relatado (e incorporado nas análises de tais fenômenos).
Concordo que Almeida et al não atenderam a esse
quesito, se isso for um ponto que Gontijo et al queiram dizer com a frase
deles logo acima. Porém há um outro ponto talvez
presente na frase de Gontijo et al com o qual não concordo tanto... Se há,
por um lado, um punhado de dados surpreendentes, e, por outro lado, uma vastidão
de dados não surpreendentes, isso não quer dizer que os dados surpreendentes
sejam inválidos. Isso pode até significar que tais dados surpreendentes,
apesar de raros, justifiquem pesquisas mais a fundo, e até mesmo que justifiquem,
já, talvez não uma mudança de paradigma em si (mudança da visão predominante
na Ciência, digamos), mas pelo menos uma maior abertura com relação ao que
cremos saber e ao que cremos não saber nessa área. Há que se olhar com muita
cautela e riqueza de detalhes os fenômenos específicos em questão. Mas me
parece que os melhores casos de crianças que alegam lembrar
de vidas passadas (algo em torno de uns 50 casos, imagino; o total
de casos estudados pelos diversos pesquisadores da área chegam a uns 3000,
naturalmente com grande variação de peso evidencial),
os melhores casos de EQM, e os melhores casos de mediunidade (em especial
o caso Leonora Piper)
se enquadrem nesse cenário para o qual estou chamando a atenção.
A seguir
Gontijo et al afirmam: “a literatura científica
sobre o tema é bastante inconsistente”. Imagino que eles queiram dizer que
há um grau significativo de incoerência nos dados científicos que constam
da literatura em questão, a ponto de causar um bom grau de “desnorteamento” em quem se debruce sobre o tema. Aí
Gontijo et al citam dois conjuntos de problemas:
conflito entre meta análises e conflito entre estudos isolados. Afirmam, no tocante a meta análises: “Por exemplo,
embora a meta-análise mencionada (Sarraf et al., 2021, p. 396) tenha encontrado evidências ‘que apoiam a hipótese de que alguns médiuns podem recuperar
informações sobre pessoas falecidas por meios desconhecidos’, outra meta-análise
do mesmo ano (Rock et al., 2021) não as encontrou”.
O grupo de Alexander et al fez já uma avaliação
desta meta-análise onde houve resultado negativo, e publicaram em 30 de
dezembro de 2022 (Silva, Julio. Moreira-Almeida,
Alexander. Controlled Experiments Involving Anomalous Information Reception
with Mediums: An Analysis of the Methods Applied in Recent Studies . Journal
of Scientific Exploration. Vol. 36, No 4 – Winter 2022). Eles citam em um trecho: “Recent
studies into the occurrence of AIR have produced divergent results, even
when applying rigorous methods to control information leakage. A recent meta-
analysis found positive results indicative of AIR (Sarraf
et al., 2021), while another, employing a smaller number of studies, found
negative results (Rock et al., 2021). This points
to the need for an analysis of the differences between the various protocols
employed in a quest to explain the discrepancies and help to move the field
forward”. O
que importa nesse ponto é, pelo menos em parte, justamente o que Gontijo
et al ressaltaram: há controvérsias. Mas conhecer
tais controvérsias é de um valor imenso. De fato, por um lado o fato de haver
controvérsias afasta a Ciência de tomar uma posição, de chegar a um veredicto
sobre o caso. Por outro lado, para aqueles que tenham o interesse e o fôlego
de se debruçar sobre a controvérsia (essa específica, e muitas outras similares),
há uma fonte de riqueza imensa em termos intelectuais, conceituais, e paradigmáticos.
Por vezes encontramos argumentos e dados de alta qualidade em “ambos os
fronts”, por assim dizer. Eu mesmo já me encontrei em uma situação de quase
“esquizofrenia epistemológica” ao me ver simplesmente
compelido a concordar solidamente com dois artigos diametralmente opostos,
escritos por dois contendores 100% discordantes entre si, Jessica Utts (pró paranormalidade)
e Ray Hyman (contra paranormalidade).
A riqueza de tal experiência é simplesmente inenarrável.
Ainda
seguindo essa linha que iniciei a descrever no parágrafo anterior, Gontijo
et al exemplificam contradições entre trabalhos
não meta-analíticos (entre estudos isolados):
“Naturalmente, estudos isolados que corroboraram esse poder mediúnico (e.g.,
Beischel; Schwartz, 2007; Beischel
et al., 2015) podem ser pareados com aqueles
cujos médiuns testados não demonstraram poder algum (e.g., Jensen; Cardeña, 2009; O’Keeffe;
Wiseman, 2005)”. Novamente, faz-se necessário
conhecer com detalhes tais trabalhos, e contrastá-los o melhor possível.
Sim, tais incoerências afastam a Ciência de um veredicto. Por outro lado,
isso deveria justamente tornar o debate mais digno de respeito e atenção.
E me parece que, de fato (como eu já disse anteriormente), essa é a postura
de Gontijo et al, de ver com respeito tais estudos
se forem bem conduzidos e bem analisados.
Em
um ponto a seguir, discordo, a princípio (e friso que isso é um preconceito
meu, ou seja, um pré conceito!) de Gontijo et
al. Eles citam que “a mediunidade de Leonora
Piper e de Chico Xavier não convenceu todos
aqueles que os investigaram (Lamont, 2017; Mori, 2010)”. Claro, não convenceu todos. Mas o que
quero dizer não é isso. Tenho uma certa convicção
(convicção de quem não estudou muito esse caso específico...) que não
há bons dados embasando uma possível paranormalidade
de Chico Xavier. Por outro lado, com relação a
Leonora Piper, minha
posição é radicalmente oposta (e, também, sem ainda ter estudado o caso...).
Acredito que Piper seja de fato merecidamente o “White Crow” (o corvo branco, a exceção
à regra que prova um fato de modo definitivo) de William James. Mas... não posso afirmar de fato isso antes de estudar o caso.
E é um caso bem trabalhoso de estudar... Enfim. Estudarei. Nos anos a seguir.
Se Deus quiser
.
Com
relação aos casos de crianças que alegam lembrar de
vidas passadas, Gontijo et al, a meu ver, se pegam em alguns pontos não pertinentes.
Temos inclusive que ter em mente que nem todos esses casos envolvem sinais
de nascença presumivelmente oriundos da encarnação anterior (admitindo-se
que se trate de fato de algum tipo de reencarnação). Também o fato dos casos
não ocorrerem de modo similar nas diversas culturas humanas não é, necessariamente,
um problema. Igualmente, o caso de tais crianças serem mentalmente “normais”
ou não é de relevância secundária. Claro, se um pesquisador (Almeida et al, por exemplo...) faz afirmações erradas a respeito
de tais casos nesses quesitos citados, então isso é sim um problema. Pelo
menos um problema para a credibilidade do pesquisador específico, e/ou do
grupo ao qual ele está ligado. O mais importante nesse fenômeno é se há uma
quantidade mínima aceitável de casos com bom peso empírico apoiando a hipótese
de reencarnação. Sou fortemente inclinado a achar que há sim. Mas isso não
é um veredicto, não é um “bater de martelo”, e sim um “início de conversa”.
Gontijo
et al citam então que “a revisão de Kirschnick et al. (no prelo) constatou que a força
ou a qualidade das evidências desses achados costuma ser baixa”
(ou seja da correspondências entre marcas
de nascença ou defeitos congênitos na “encarnação atual” e ferimentos graves
ou fatais na “encarnação anterior”). Sem dúvida esse tipo de artigo de Kirschnick et al é, a princípio,
altamente enriquecedor e indispensável. Já há inclusive uma resposta a tal artigo, do autor James G. Matlock (Birthmarks and birth defects
in the head and neck region and claims of past-life memories: Cases in Ian
Stevenson’s Reincarnation and Biology. - James G. Matlock, Explore, https://doi.org/10.1016/j.explore.2023.10.011).
Enfim,
a meu ver, novamente, mais um caso de rica polêmica, e não de veredictos
ditatoriais em uma direção ou outra.
Um
penúltimo ponto abordado por Gontijo et al se
refere às EQMs. Citam: “Por fim, a literatura
científica sobre EQMs e experiências extracorpóreas
parece ser igualmente inconsistente e controversa”. Essa é, deveras, uma
situação incômoda... Eu diria mesmo que há um dolorido manancial de verdade
por trás dessa reclamação de Gontijo et al. Dolorido
para todos nós que nutrimos um desejo tanto de sobreviver à morte quanto
de, quiçá, nos reencontrarmos com nossos entes queridos que já se foram.
Eu descreveria a situação da seguinte maneira: quem quer que estude a fundo
a obra de Kardec, fica (penso eu) com a nítida impressão que, à época de
Kardec (tipo, anos 1860/1870), havia uma certeza bem clara quanto à inequívoca
e farta comprovação e aceitação iminente da vida após a morte por parte da
Ciência e da Humanidade. Inclusive, aquilo que agora fazemos com celulares
era para ter sido já iniciado nas últimas décadas do século XIX através de
comunicações mediúnicas de alta fidelidade... A realidade se mostrou muito,
muito diferente desta expectativa. E para piorar o quadro (penso eu), o fenômeno
não foi de fato refutado, as evidências não foram descartadas ou provadas
falsas. A anomalia persiste, sugestiva de algum
modo de sobrevivência à morte. E persiste de um modo que não é fruto de fraude,
de má observação ou de mal relato, ou fruto de
mecanismos conhecidos pela Ciência nem de antigamente e nem de agora. Mas
persiste de um modo incômodo, intermitente, não muito confiável (com regras
não muito bem conhecidas ou controladas), e fraco (ou aparentemente fraco).
Não sabemos o que é isso. Mas, incomodamente, sabemos que isso
é! (ou seja, que isso existe. Claro, existem os que discordam, a esmagadora
maioria por desconhecer as evidências, uma certa
quantidade por desonestidade intelectual quanto aos dados, e uma minoria
respeitável por discordar da interpretação dos dados). O que aconteceu com
relação à mediunidade se repetiu, surpreendentemente, com as EQMs. Nós que vivemos (pela mídia de então, no meu
caso a partir de 1978) o momento quando o assunto veio vigorosamente à baila
com os livros de Raymond Moody Jr., e logo a
seguir com os estudos de Kenneth Ring, Bruce
Greyson, Michael Sabom e alguns outros, não tínhamos dúvida
que as EQMs seriam uma fonte clara e inequívoca
de informações sobre algum tipo de funcionamento da mente independente do
cérebro. Contudo, novamente, as coisas se desenvolveram de um modo muitíssimo
diferente disso (e para mim especificamente, isso foi uma forte fonte de
decepção e até de grande tristeza mesmo). E, novamente, se manteve um grau
inequívoco (ainda que pouco freqüente, fraco, etc)
de... anomalia. A “inconsistência” (incoerência)
e controvérsia à qual Gontijo et al se referem
na verdade é essa: o fenômeno não era o que esperávamos, não era o que imaginávamos,
possui dinâmica e características que beiram as raias do ininteligível e
do indomável. Mas a “droga” do fenômeno existe, está lá, e sugere, pelo menos
levemente, a possibilidade de sobrevivência pós morte.
Conhecer e relatar o fenômeno o mais fidedignamente possível é uma etapa
indispensável para se tentar avançar na compreensão do mesmo. E, infelizmente,
tanto os ditos “céticos” quanto os ditos “proponentes de interpretações sobrevivencistas” muitas vezes pecam grandemente nesse
quesito. Precisamos de menos “ceticismo” e de menos “proponência”®
(perdoem o neologismo
) e de mais honestidade intelectual. E coragem frente à dor inerente a
esse conjunto de questões e a tudo que elas implicam. Gontijo et al incluem a seguir: “Além disso, quando revisitados
por céticos, relatos de EQMs e outras experiências
extracorpóreas podem se revelar incoerentes e/ou exagerados (e.g., Wiseman, 2017)”. Novamente, muitíssimos dos ditos
“céticos” são fortemente desonestos intelectualmente. Vejo Wiseman com enorme suspeição... Sua competência e
conhecimento são extremas. Seu compromisso com
a honestidade intelectual, por outro lado, é algo pelo qual eu não ponho
minha mão no fogo. Mas... isso não invalida o
que ele fale. Há que se conhecer com detalhes e cuidado as posições de Wiseman. E contrastar com a posição dos seus contendores.
Praticamente
ao fim da resenha, Gontijo et al citam um artigo
de Bruce Greyson sobre EQMs,
de 2013. Greyson é, a princípio, um defensor
da hipótese sobrevivencista. Segundo Gontijo
et al: “Em um tom bastante ponderado, o autor
conclui que as pesquisas têm ‘oferecido evidências indiretas que apoiam os três paradigmas da etiologia da EQM (ou
seja, os paradigmas psicológico, neurofisiológico e transcendental), mas
não há qualquer evidência direta de nenhum deles até o momento’ (p. 267)”.
Essa afirmação de Greyson chega a ser pelo menos
minimamente bizarra, à luz de diversas coisas que ele afirma neste mesmíssimo
artigo... Exemplo 1: “Ring e Cooper (1997,
1999) relataram 31 casos de indivíduos cegos – alguns cegos de nascença –
que experienciaram percepções visuais precisas
de objetos e eventos durante suas EQMs”. Exemplo
2 (sobre o caso Pam Reynolds): “Sabom (1998) observou que enquanto essa mulher estava
morta, como mostravam o EEG silencioso, a ausência de resposta do tronco
cerebral e a falta de sangue no cérebro, ela teve a mais profunda EQM de todos
os pacientes de seu estudo; sua EQM atingiu o escore de 27 pontos na Escala
de EQM, quase 2 desvios-padrão acima da média
para os experienciadores de EQM”. Exemplo
3 (ainda sobre o caso Pam Reynolds...):
“Não pode ser explicado pela reconstrução baseada nas conversas gerais durante
a cirurgia, porque os fones moldados que estavam em seus ouvidos bloqueavam
qualquer audição possível, e não havia respostas de seu tronco cerebral
para estimulação auditiva” (ou seja, de novo: mortinha da silva). Aí temos
aquele trecho anterior com uma fala “cautelosa” por parte de Greyson citado por Gontijo et
al no início deste parágrafo, e temos também esses outros dois trechos igualmente
“cautelosos” (ou... bizarros) que Greyson afirma
antes do trecho citado por Gontijo et al: “A pesquisa da etiologia das EQMs continua prejudicada pela dificuldade na obtenção
de evidências diretas que apoiem as hipóteses
plausíveis, em parte devido à ocorrência imprevisível da experiência”. E
também: “Estudos de visões fora do corpo supostamente precisas que foram,
por vezes, relatadas por experienciadores de
EQMs, ficaram comprometidas por sua dependência
das observações aleatórias de experienciadores
enquanto estavam, segundo dizem, fora de seus
corpos, o que pode ser difícil de verificar ou de avaliar de modo retrospectivo”.
Então
vejam que quadro quase desesperador diante de nós. De um lado temos 31 cegos
com percepção visual correta durante suas EQMs,
somado a uma mulher mortinha da silva com score
altíssimo (Record!) na escala de profundidade da
EQM, somado a essa mesma mulher sem atividade no tronco cerebral durante essas
vivências profundas. Um verdadeiro The Walking Dead. Por outro
lado temos “ausência de evidências diretas” (o que seria tal evidência?
Uma tunda no meio da fuça dado pelo espírito no pesquisador
chatinho?... Há inclusive, em inglês, um acrônimo para isso: IOTT),
a dificuldade de evidências diretas devido à fortuidade
do evento EQM (imaginem se o evento fortuito de eu acertar na loteria dificultasse
a evidência direta do dinheiro na minha conta...), e aí as visões passam
a ser “supostamente precisas” baseadas em “observações aleatórias”, e tudo
isso palavras do Greyson! (e para não piorar
o sururu, eu não vou nem citar que, na versão mais recente kindle desta mesma obra, Greyson
ainda acrescenta os seguintes dados confundidores:
“In a recent review
of 93 reports of out-of-body perceptions during NDEs, 86% were corroborated by an independent informant - Holden, 2009.
Of
these out-of-body perceptions, 92% were completely accurate, 6% contained
some error, and only 1% were completely erroneous).
Não,
eu não estou citando isso tanto para realçar potenciais forças do conjunto
de fenômenos em si nas EQMs (inclusive, o caso
do Esquadrão G.I. Joe dos 31 Cegos Snipers e o da Mortiça Rebelde possuem diversos detalhes
complicadores, nem todos devidamente citados nas duas versões do artigo
de Greyson no Varieties
of Anomalous Experience...). Estou citando muito mais para enfocar
o aspecto estranho e talvez indevidamente confundidor
do relato dos próprios pesquisadores/pensadores principais desta área de
investigação. Isso torna muito mais difícil para quem não tenha estudado mais
a fundo tais fenômenos a devida aquilatação de
afirmações mais “vanguardistas” como as feitas por Almeida et al no livro em foco (e nem estou dizendo que eu
concorde com as afirmações vanguardistas de Almeida et al). Gontijo et al, praticamente ao fim da sua resenha, afirmam,
contrastando o livro e a postura de Almeida et al com o artigo e a postura
de Bruce Greyson: “Não encontramos essa mesma
ponderação nos capítulos finais de ‘Ciência da vida após a morte’. Por exemplo,
após criticarem as hipóteses parapsicológicas para explicar os fenômenos anômalos
supracitados, eles concluem que ‘não há candidato a paradigma concorrente
[ao dualismo] que seja igualmente bem apoiado por evidências empíricas e capaz
de explicar todos os fatos juntos’ (p. 77)”. Então a meu ver o problema neste
caso é que não estamos de fato diante de ponderação nas afirmações de Greyson, ou de grave falta de ponderação nas colocações
de Almeida et al. Estamos, isso sim, diante de
afirmações, em ambos os casos, um tanto quanto descompassadas com a devida
aquilatação da base de dados oriunda dos fenômenos
EQM.
Ainda
assim, um ponto fundamental a destacar nessa questão é que Almeida et al de fato acabam adotando uma postura mais cautelosa
na parte de Conclusão do livro, naturalmente não na página 77, mas
na página 85: “Para avançar em uma discussão acadêmica rigorosa sobre a
sobrevivência da consciência, além de uma divulgação mais ampla do que já
se sabe, é fundamental apoiar o desenvolvimento e uma competição darwiniana
de programas de pesquisa (Moreira-Almeida &Araujo, 2017). Esses programas
de pesquisa não apenas desenvolveriam candidatos a paradigmas para dar conta
de todo o corpo de evidências, mas também os testariam sob uma diversidade
de estudos empíricos de alta qualidade com abordagens metodológicas diferentes,
mas complementares (Chibeni & Moreira-Almeida,
2007; Moreira-Almeida & Lotufo-Neto, 2017)”.
Pelo menos a meu ver, a menção explícita a “desenvolvimento
de candidatos a paradigmas para dar conta de todo o corpo de evidências”
indica claramente a necessária abertura para explicações alternativas. Não
posso deixar de finalizar essa reflexão sobre a resenha de Gontijo et al com uma constatação de que, ao que me parece,
Gontijo e Almeida concordam no que de fato importa: Almeida aberto para um
paradigma monista, se esse explicar melhor os
fenômenos. E Gontijo aberto para um paradigma dualista, se esse explicar
melhor os fenômenos.
Um
último comentário ao trecho final da resenha de Gontijo et al. Eles afirmam: “Como esperamos ter demonstrado
nesta resenha, a literatura científica está longe de apoiar consistentemente
esse tipo de conclusão – e crer no contrário é, na nossa opinião, o maior
equívoco dos autores”. O trecho completo ao que Gontijo et al se referem é o seguinte: “Não há candidato a
paradigma concorrente que seja igualmente bem apoiado por evidências empíricas
e capaz de explicar todos os fatos juntos. Esta tem sido a conclusão a que
chegaram muitas (provavelmente a maioria) mentes científicas e filosóficas
altamente qualificadas (de diversas origens intelectuais e geográficas) que,
meticulosamente, desenvolveram e publicaram análises abrangentes das evidências
disponíveis para a sobrevivência”. E logo a seguir, Almeida et al colocam uma lista de pensadores e pesquisadores
que endossariam tal posição, em diversos países do mundo, ao longo de diversas
décadas. O ponto importante é que Almeida et al
não disseram que haja apoio consistente (coerente, invariável ou quase invariável).
Eles disseram que se trata de provavelmente a maioria. Ou seja, provavelmente,
digamos, 51%. E eles ainda estão abertos para que seja menos que isso, menos
que 50% (já que disseram provavelmente a maioria). Então, novamente,
a meu ver eles não estão discordando de Gontijo et
al.
Muito
do estudo nessa área é, ou deveria ser, norteado pela máxima segundo a qual
O Diabo se Encontra nos Detalhes... E por vezes a maneira
como alguns pensadores deixam passar despercebidos alguns dos tais detalhes
parece revelar algo sobre os pensadores em si, seus viézes e antipatias... E me parece que, naturalmente,
isso pode ser observado em Almeida et al, em
Gontijo et al, e mesmo em “Júlio e tal”.
Julio
Siqueira, 12 de dezembro de 2023.