Refletindo Sobre os Argumentos de Sílvio Seno Chibeni.
O estudioso do espiritismo
(kardecismo) Sílvio Seno Chibeni possui uma quantidade considerável de
textos e artigos onde defende que o kardecismo (ao qual ele invariavelmente
se refere como "espiritismo") é de fato, além de religião e filosofia, ciência.
E boa ciência. Chibeni possui um currículo e formação
impressionante na área de Filosofia da Ciência, o que sem dúvida o situaria
como um avaliador privilegiado para aquilatar a faceta científica do kardecismo.
No meu entendimento, porém, o que acontece é justamente o contrário. Sua
avaliação da cientificidade do kardecismo possui muitos problemas, incluindo
diversos equívocos de visão, tanto com relação ao kardecismo quanto com relação
a algumas das ciências ordinárias e com relação às chamadas "ciências psi"
(especificamente a parapsicologia). Em outubro de 2007, enviei um email ao
Sr. Chibeni, perguntando se o artigo "A Excelência Metodológica do Espiritismo"
(1988) ainda correspondia à sua visão atual dos temas abordados. Ele afirmou
que em linhas gerais sim, mas assinalou que no site do GEEU
há artigos dele mais recentes que tratam de pontos importantes abordados
no artigo em questão. Em vista disso, comentarei primeiro o artigo "A Excelência
Metodológica do Espiritismo" (1988), e após isso alguns pontos adicionais
dos artigos "Ciência
Espírita" (1991) e "O Paradigma
Espírita" (1994).
Comentários sobre o artigo "A Excelência Metodológica do Espiritismo".
http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482/exemet.html
Acessado em 28 de outubro de 2007.
Publicado em Reformador, novembro de 1988, pp. 328-33 e dezembro de 1988, pp. 373-78. Digitado por Ademir L. Xavier Jr.
Os artigos serão reproduzidos por mim aqui apenas na medida necessária para comentar seus devidos trechos dentro do contexto apropriado. Os trechos dos artigos aparecem em azul, e meus comentários em negro.
A Excelência Metodológica do Espiritismo
Silvio Seno Chibeni
Muitas vezes quando se fala de metodologia em
ciência estamos nos referindo ao conjunto de práticas através das quais uma
determinada ciência realiza experimentos e observações. Contudo, nesses três
artigos de Chibeni que comentarei, não é de fato analisada a maneira como
o kardecismo realiza suas observações e experimentações, e nem como se chegou,
no kardecismo, às conclusões e visões centrais abraçadas por esta crença
(ou seja, abraçadas pelo kardecismo). Isso é especialmente problemático, porque
é justamente aí que se encontram os grandes problemas que mes impede de reconhecer
no kardecismo qualquer qualidade minimamente científica (ou seja, qualquer
qualidade na sua prática real que justifique dizer-se que o kardecismo já
pode ser considerado como uma ciência com conclusões pelo menos minimamente
confiáveis), muito menos ainda dizer que o kardecismo desfruta de uma excelência
metodológico-científica.
Seções:
1. Introdução
2. O Espiritismo é científico
3. "O Espiritismo não é da alçada da ciência"
4. As deficiências das chamadas "ciências psi"
5. O Espiritismo é religioso
A estrutura de seções do artigo pode ser vista acima.
1. Introdução
O Espiritismo não pode considerar crítico sério
senão aquele que tudo tenha visto, estudado e aprofundado com a paciência
e a perseverança de um observador consciencioso; que do assunto saiba tanto
quanto o adepto mais esclarecido; que haja, por conseguinte, haurido seus
conhecimentos algures, que não nos romances da ciência; aquele a quem não
se possa opor fato algum que lhe seja desconhecido, nenhum argumento
de que já não tenha cogitado e cuja refutação faça, não por mera negação,
mas por meio de outros argumentos mais peremptórios; aquele, finalmente,
que possa indicar, para os fatos averiguados, causa mais lógica do que a que
lhe aponta o Espiritismo. Tal crítico ainda está por aparecer.
Allan Kardec, Le Livre des Médiuns, § 14, n. 8. [nota
1]
Acima temos um comentário de Kardec. Ainda que eu simpatize
muito com os níveis de exigência delimitados por Kardec no trecho acima (até
devido ao meu perfeccionismo intrínseco), creio que Kardec exagerou sobremaneira
nessa passagem. Afinal, críticas relevantes podem aparecer mesmo vindas de
um observador eventual, que olhe um ponto específico e que detecte aí um
problema relevante. É do interesse do pesquisador espírita ouvir sempre os
críticos e as críticas. E, muito mais importante: o próprio Kardec, na prática,
ouvia e respondia às críticas vindas de pessoas que seriam caracterizadas
como "críticos não sérios" pelos padrões definidos acima. Ele não era do
tipo que busca motivos para desqualificar algum crítico e relegar as críticas
ao esquecimento. Se temos, de um lado, o "crítico sério", e de outro, o
"criticado sério", a mim parece que, quase invariavelmente, Kardec se comportava
como o criticado sério. Ou seja, ele tentava ouvir e pesar a substância
da crítica mesmo se ela fosse proveniente de críticos fracos ou maldosos.
Ao procurarmos aplicar esses critérios para a caracterização
de um crítico legítimo do Espiritismo a cada um daquele que o têm pretendido
ser durante os mais de cento e vinte anos que se passaram desde que Allan
Kardec os enumerou, verificamos, facilmente e sem possibilidade de erro,
que mesmo hoje tal crítico "ainda está para aparecer",
Penso que o trecho acima de Chibeni é incorreto. O
próprio Kardec executava a auto-crítica, o que o coloca (ou seja, o próprio
Kardec) entre um dos primeiros e melhores críticos do espiritismo (kardecismo).
Não é inexpressivo o número de indivíduos e instituições
ditos espíritas empenhados na busca de "novidades" que possam, segundo pensam,
"atualizar" a Doutrina, dar-lhe "fundamentação científica", "harmonizá-la
às conquistas da Ciência". Nesse sentido, procuram ressaltar e dar cobertura
- inclusive através de periódicos espíritas, ciclos de palestras, etc - a
pesquisadores das chamadas "ciências psi", notadamente aqueles detentores
de títulos acadêmicos. Tentaremos, dentro das limitações de espaço de um
artigo, mostrar que tais atitudes decorrem de uma injustificável inversão
de valores, prejudicial tanto ao Movimento Espírita como ao próprio desenvolvimento
da Doutrina e do conhecimento humano em geral.
A posição de Chibeni, conforme exposta no parágrafo
acima, se mostra reacionária (no sentido de "contrária à reação"). Sem dúvida
ele está, penso, correto ao assinalar que há problemas nessas tentativas
de "melhoramento" do kardecismo. Contudo, penso que de fato elas surgem de
problemas reais internos à própria estrutura do kardecismo, e de sua relação
com o mundo e com o conhecimento (ou seja, com a busca da verdade científica).
2. O Espiritismo é científico
O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza,
origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal.
Allan Kardec, Qu'est-ce que le Spiritisme, Preâmbulo.
Ao reproduzir o trecho acima de Kardec, Chibeni delimita
o que é o Espiritismo (que eu tento chamar sempre de Kardecismo,
devido aos motivos de clareza). Note que se trata de uma ciência que parte
do princípio de que existem de fato espíritos. Um ponto inicial importante
é identificarmos até que ponto a afirmação de que existem espíritos é, em
si mesma, uma afirmação científica. Uma ciência não pode se basear em uma
premissa não científica. Então, se não houver base científica para a afirmação
de que existem espíritos, a cientificidade do kardecismo fica insustentável.
Temos então que saber, nesse primeiro ponto, como se estabeleceu, e como
Kardec estabeleceu, que existem espíritos. Que método ele
usou para validar tal verdade. Um segundo ponto é como tal "ciência" estuda
a tal natureza, origem e destino dos espíritos, e suas relações com o mundo.
Quais métodos são utilizados por essa "ciência" para validar suas afirmações
a respeito dessas supostas entidades do mundo real (espíritos). Como demonstro
em minha principal análise do trabalho de Kardec, neste
link, há graves problemas nos métodos utilizados por Kardec, bem como
em suas premissas e conclusões, a ponto de situar o conjunto da obra kardequiana
bem abaixo do minimamente desejável para a qualificarmos como científica.
A tarefa de determinar quais as características de uma
teoria são necessárias e suficientes ao seu enquadramento na categoria de
ciência cabe à sub-área da Filosofia intitulada Filosofia da Ciência.
Essa disciplina, assim como outros ramos do saber, vem evoluindo constantemente.
Em seu caso específico, progressos essenciais ocorreram no século XX, e ,
mais acentuadamente, a partir da década de 60. Os trabalhos de vários filósofos,
entre os quais Karl Popper, Willard Quine, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend
e Imre Lakatos, evidenciaram graves problemas na concepção de ciência que
prevaleceu durante séculos, e ainda hoje é muito freqüente encontrar-se entre
os não filósofos.
Há de fato uma enorme complexidade nas reflexões filosóficas
sobre o que é ciência e como ela procede e até mesmo como ela deve proceder. No nosso caso específico, a pergunta é: o que
torna o kardecismo uma ciência, e o que torna a Umbanda (ou o Candomblé)
uma não ciência?
Muito simplificadamente, poderíamos dizer que pelo menos
desde o surgimento da ciência moderna, por volta do século XVII, acreditava-se
que a Ciência consistia na catalogação neutra de um grande número de "fatos",
dos quais então resultariam, de maneira "espontânea", certa e infalível,
as leis gerais que o regem; a reunião de tais leis constituiria então uma
teoria científica. [...]
Imre Lakatos sistematizou as novas idéias surgidas na
Filosofia da Ciência, propondo que a atividade científica desenvolve-se em
torno do que denominou "programa científico de pesquisa". [nota 3] Um tal
programa de pesquisa consiste, em termos simplificados, de um "núcleo rígido"
de hipóteses teóricas básicas, suplementado por um "cinturão protetor" de
hipóteses auxiliares, que serve para ligar e ajustar o núcleo aos fenômenos
de que a ciência trata. A cada programa ainda estão associadas duas "heurísticas",
uma "negativa", que é a decisão metodológica de se manter inalteradas as
hipóteses do núcleo, e outra "positiva", que é um conjunto de sugestões ou
idéias de como mudar ou desenvolver o cinturão protetor de modo que o programa
dê conta de novos fenômenos e explique os já conhecidos de maneira mais precisa.
Um programa de pesquisa é dito "progressivo" caso leve sistematicamente à
descoberta de novos fatos, que sejam por ele explicados; caso contrário, será
dito "degenerante".
Esse é um ponto deveras interessante, e Chibeni foi
meu primeiro contato com a filosofia da ciência, em textos dele que me chegaram
às mãos em 1998 ou 1997. Daí li alguns livros relacionados ao assunto, especialmente
"O Que é Ciência Afinal?" (Alan Chalmers) e "A Estrutura das Revoluções Científicas"
(Thomas Kuhn). A história parece mais ou menos assim (atente o leitor para
o fato de que o parágrafo abaixo se trata de um esboço geral feito por um
humilde não especialista em filosofia e história da ciência):
Desde o início da "ciência moderna", lá pela época
de Galileu e Newton (século XVIII), e Bacon também..., até inícios do século
XX, reinava o "indutivismo ingênuo". Era a visão segundo a qual a ciência
progredia a partir de um ponto inicial de observações (ou de experimentações)
totalmente destituídas de qualquer teorização prévia. Tais observações levavam
o cientista a certas conclusões (hipóteses ou teorias). Isso é a indução.
Daí, uma vez tendo a teoria nas mãos, o cientista previa diversos fatos e
fenômenos como conseqüência da teoria. Isso é a dedução. Com Popper, na primeira
metade do século XX, viria a idéia de que as teorias científicas tem que
ser falsificáveis, ou seja, refutáveis. Muitas proposições religiosas são
afirmações de fé que não têm como ser refutadas, como por exemplo a virgindade
de Maria mãe de Jesus Cristo. Não poderia esse exemplo, então, ser considerado
uma hipótese científica. Após Popper, Kuhn apresentou uma visão interessante
de ciência como uma sucessão de paradigmas (ou seja, modos de pensar e ver
o mundo, e modos de se relacionar com ele, de testá-lo, de observá-lo, etc).
Lakatos, a seguir, apresenta a visão talvez mais interessante, que é a descrita
acima por Chibeni. O modelo de Lakatos parece uma célula viva, ou uma sociedade
humana; parece mais uma descrição vinda de um cientista político do que
de um técnico de metodologia investigativa (e Lakatos não era nenhum dos
dois, e sim um filósofo da ciência).
Tomando o exemplo de um dos mais bem sucedidos programas
de pesquisa da Física, a Mecânica Newtoniana, vemos que possui um núcleo
rígido formado pelas três leis newtonianas do movimento e pela lei da gravitação
universal, que a heurística negativa do programa recomenda sejam mantidas
inalteradas: eventuais discrepâncias com a experiência devem ser eliminadas
através de ajustes nas hipóteses auxiliares do cinturão protetor. Esse processo
ocorreu várias vezes durante o desenvolvimento do programa, como quando,
no século XIX, se verificou que as previsões teóricas para a trajetória do
planeta Urano conflitavam com os dados da observação astronômica; ao invés
de imputar esse desvio a possível falsidade das leis do núcleo rígido, assumiu-se
que deveria existir um corpo celeste desconhecido perturbando a trajetória
do planeta; mais tarde, foi, de fato, observada a existência desse corpo,
o planeta Netuno.
Urano apresentava (apresenta) uma falsa anomalia para
o paradigma newtoniano. Curiosamente, Mercúrio apresentava (apresenta), em
seu movimento, uma anomalia para o paradigma newtoniano que não era falsa.
Tal anomalia só pode ser explicada por outro paradigma, ou seja, pela Teoria
da Relatividade de Einstein.
Assim como nesse episódio, a conjunção das heurísticas
negativa e positiva do programa newtoniano levou à inúmeros desenvolvimentos:
novas teorias ópticas, novos aparelhos e técnicas de observação, criação
de novos ramos da Matemática etc. A partir do início de nosso século, porém,
o programa tornou-se degenerante, por motivos vários que não cabe expor aqui,
vindo a ser substituído pelos programas das Teorias da Relatividade e da
Mecânica Quântica.
Olhando agora para o Espiritismo, vemos que traz em
si todas as características de um programa de pesquisa progressivo, sendo,
portanto, genuinamente científico, segundo o critério lakatosiano.
Minha posição é diametralmente oposta a Chibeni nesse
ponto. Penso que o kardecismo se mostra como um programa de pesquisa degenerante.
Possui um núcleo rígido formado pelo princípio da existência
de uma "inteligência suprema, causa primária de todas as coisas", dotada
da suprema justiça e bondade; pela lei de causa e feito; pela imortalidade
dos seres vivos; por sua evolução ilimitada; pela existência do livre arbítrio,
a partir de determinado estágio evolutivo. Desse núcleo pode-se, com o auxílio
da lógica ("raciocínio") e de assunções auxiliares, deduzir ("explicar")
a infinidade de fenômenos de que trata o Espiritismo: os fenômenos mediúnicos
e anímicos, a evolução dos seres, seus estados psicológicos, sua condição
após a morte etc. Todos esses fato, analisados extensiva e objetivamente
pelo Espiritismo, embasam e sancionam o corpo de seus princípios teóricos;
este, a seu turno, concatena, torna inteligíveis, explica aqueles fatos.
Novamente se faz necessário perguntar: qual a diferença
disto acima para o que ocorre na Umbanda, ou no Candomblé por exemplo. Há
que se frisar, inclusive, o caráter altamente problemático dos pilares básicos
elencados por Chibeni acima:
1- Existência de uma inteligência suprema (Deus): não
parece haver evidências, diretas ou indiretas, que tornem forçoso ou mesmo
minimamente necessário, a existência de um Deus assim descrito por Chibeni.
2- Deus sendo dotado de suprema justiça e bondade:
há graves problemas para a defensabilidade de tal tese. O mundo (Universo)
não parece bom nem justo.
3- Lei de causa e efeito: aqui Chibeni deve estar se
referindo a "quem com ferro fere, com ferro será ferido". Não há evidências
suficientes para embasar tal visão "cármica" kardecista.
4- Imortalidade dos seres vivos: Chibeni deve estar
se referindo à imortalidade dos "seres mortos", ou seja, imortalidade do
espírito. Mesmo que haja evidências para a sobrevivência de algo como um espírito
para além da morte corporal, isso não é sinônimo de que tal sobrevivência
se dará para toda a eternidade. Talvez os espíritos existam mas morram, em
um ano, ou cem anos, ou dez mil anos. Talvez morram em certas situações especiais,
como ao cair na singularidade de um buraco negro. Como excluir tais possibilidades?
5- Evolução ilimitada dos "seres vivos": aqui me parece
que Chibeni está se referindo ao "melhoramento" constante dos espíritos,
aumentando seu conhecimento, sua bondade, e seu poder sobre os espíritos que
lhes são inferiores. Esse ponto é questionável mesmo dentro do paradigma kardecista,
onde podemos nos perguntar se há algum progresso possível para um espírito
que seja já Espírito Puro. Eu, pessoalmente, considero que não haveria. Ou
seja, que assim como há um ponto de início na escala espírita, há também
um ponto (ponto!) final.
6- Existência de livre arbítrio: ponto altamente controverso
em filosofia. Na verdade, só conhecemos determinismo e aleatoriedade. Ainda
está para nascer uma teoria do livre arbítrio, e eu pessoalmente não tenho
quase nenhuma esperança de que ela venha de fato a aparecer.
Allan Kardec percebeu, em admirável antecipação às conquistas
recentes da Filosofia da Ciência, a importância fundamental dessa "simbiose"
entre fenômeno e teoria, e expendeu extensos comentários sobre ela em várias
de suas obras.
Chibeni se esquece de dizer que Kardec era, como talvez a maioria dos de sua época, um indutivista ingênuo. Em A Gênese, Kardec explica:
"Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente da mesma forma que as ciências positivas, aplicando o método experimental. Fatos novos se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas; ele os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois, deduz-lhes as conseqüências e busca as aplicações úteis. Não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não apresentou como hipóteses a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da doutrina; concluiu pela existência dos Espíritos, quando essa existência ressaltou evidente da observação dos fatos, procedendo de igual maneira quanto aos outros princípios. Não foram os fatos que vieram a posteriori confirmar a teoria: a teoria é que veio subseqüentemente explicar e resumir os fatos. É, pois, rigorosamente exato dizer-se que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação. As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então, acreditou-se que esse método também só era aplicável à matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas." |
Isso acima é a própria definição do indutivismo ingênuo.
Uma questão interessante é então a seguinte: será que Kardec advogava o indutivismo
ingênuo mas, na prática, fazia algo diferente, algo melhor e mais avançado?
Na verdade penso que sim. E aliás: tanto ele quanto a quase totalidade dos
cientistas de então! Por isso que, a meu ver, a filosofia da ciência evoluiu
de uma pretensão de ensinar como se deve fazer ciência (que é o que
ocorria quando difundiam o indutivismo ingênuo - séculos XVII até XIX/XX)
para uma visão mais lúcida de descrever como a ciência (enquanto
fenômeno humano) de fato se dá.
A primeira sentença que destacamos revela uma vez mais
que Kardec localizava o caráter científico do Espiritismo na "doutrina",
na sua "parte filosófica", que, no contexto de nossa análise, deve ser entendido
como aquilo a que vimos denominando "teoria". Os fatos em si não constituem
a ciência.
No meu entendimento, as ciências normalmente possuem
uma teoria (ou um conjunto de teorias), um método (ou um conjunto de métodos
observacionais e/ou experimentais), e um objeto de estudo (algo a ser observado
e/ou submetido a experimentos). Tudo isso pode ser chamado, conjuntamente,
de um paradigma (kuhniano). Ou de um programa de pesquisas
(lakatosiano).
Nosso segundo destaque mostra que Kardec já entendia
o papel da teoria como dando "corpo", ou seja, coesão, inteligibilidade,
aos fenômenos, que é a tarefa que Lakatos atribui aos princípios teóricos
do programa de pesquisa, notadamente os de seu núcleo rígido.
Não parece haver grande vanguardismo de Kardec nisso
acima. Kardec estava provavelmente sendo igual à média dos bons cientistas
seus contemporâneos.
3. "O Espiritismo não é da alçada da Ciência"
A frase que serve de título a esta seção foi extraída
do Item VII da magnífica peça "Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita",
que Kardec fez figurar como introdução de O Livro dos Espíritos. Esse item
trata especificamente da relações entre a Doutrina Espírita e a Ciência,
devendo esta ser entendida aqui como o conjunto das ciências ordinárias, "oficiais",
das academias, tal como a Física, a Química e a Biologia. [nota 4]
Penso que Chibeni interpreta incorretamente essa afirmação
de Kardec. Kardec falava de algumas ciências específicas. Especialmente a
física. Na época dele, creio eu, ao falar-se de "ciência", vinha-se à mente
as ciências exatas (ou quase exatas...). Os experimentos e observações da
física e da química, e as observações da astronomia, são, via de regra, altamente
precisos e reprodutíveis. Alguns da biologia também. Na época de Kardec
(assim imagino eu...), coisas como sociologia, psicologia, ciência política,
antropologia, etologia (estudo do comportamento animal), bem como diversos
ramos da biologia, não apareciam ainda como ciências. Ou seja, ou não existiam
ainda, ou não era isso que se pensava quando se falava em "ciências". O
fato é que o kardecismo, enquanto ciência, possui características altamente
similares a algumas das "ciências" atuais, como a sociologia, a psicologia
e a etologia.
As ciências ordinárias assentam nas propriedades
da matéria, que se pode experimentar e manipular livremente; os fenômenos
espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e
que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos.
As observações não podem, portanto, ser feitas de mesma forma; requerem condições
especiais e outro ponto de partida. Querer submetê-la aos processos comuns
de investigações é estabelecer analogias que não existem. A Ciência, propriamente
dita, é, pois, como ciência, incompetente para pronunciar na questão do
Espiritismo: não tem que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento,
favorável ou não, nenhum peso poderá ter.
É admirável a simplicidade do argumento: o Espiritismo
e a Ciência tratam de domínios diferentes de fenômenos: o primeiro
dos relativos ao elemento espiritual, a segunda daqueles concernentes ao
elemento material. Têm, portanto, métodos específicos e objetivos distintos,
não cabendo, pois, julgamentos recíprocos.
Para os efeitos disso dito acima, não há, no kardecismo,
nenhuma singularidade com relação ao seu objeto de estudo. O kardecismo,
se for uma ciência (ou a partir do momento em que atinja status verdadeiramente
científico), é uma ciência como qualquer outra. A ciência biológica, via
de regra, não é da alçada da ciência (da ciência
química). A ciência química, via de regra, não é da alçada da ciência
(da ciência biológica). Idem para o kardecismo, se e quando for ciência.
A diferença, no kardecismo, entre o mundo material e o mundo espiritual é
que este último é feito de... matéria espiritual! Matéria portanto
(de algum tipo). Pode-se igualmente dizer que há uma diferença entre a "matéria
biológica", a "matéria química", e a "matéria física", possuindo inclusive
cada uma sua lógica própria (regras mecânicas de funcionamento).
Aquele que se fez especialista prende todas
as suas idéias à especialidade que adotou. Tirai-o daí e o vereis sempre
desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho: conseqüência da fraqueza
humana.
Nada obsta, evidentemente, a que os cientistas se interessem,
enquanto homens, pelo Espiritismo, e o estudem e avaliem nessa condição.
Um pouco abaixo do trecho que acabamos de transcrever, Kardec pronuncia-se
nesse sentido:
Enquanto homens, alguns cientistas podem se interessar e estudar o
kardecismo. E, ao fazerem isso, podem se tornar cientistas kardecistas,
ou cientistas espíritas. O mesmo se dá com alguns cientistas físicos
que, enquanto homens, resolvem estudar a biologia, e acabam
se tornando cientistas biológicos.
O Espiritismo é o resultado de uma convicção pessoal,
que os cientistas, como indivíduos, podem adquirir, abstração feita de sua
qualidade de cientistas [...].
A física e a biologia também são o resultado de uma
convicção pessoal. E o Candomblé também. O que torna os dois primeiros talvez
ciência, e o último talvez não ciência, é o tipo de método usado para se
observar e experimentar com a realidade, os critérios utilizados para se decretar
a existência de seu objeto de estudo, e a origem ("como surgiram") de suas
teorias e paradigmas.
Ainda um último aspecto está envolvido nas relações
entre o Espiritismo e a Ciência: a necessidade que ele tem de não entrar
em descompasso com o progresso científico.
Esse é um ponto especialmente delicado, que retomarei
mais abaixo...
No entanto, é preciso cautela no entendimento da progressividade
do Espiritismo.
Primeiro, ela deve ocorrer de acordo com a heurística
positiva do próprio programa espírita, sem recurso a elementos estranhos,
venham de onde vierem, sob o risco de este perder sua consistência.
Aqui Chibeni parece começar a alertar contra "paradigmas"
concorrentes, como a parapsicologia, etc.
Agora é certo que não há nenhum princípio científico
estável, nenhuma "verdade prática", que o Espiritismo não tenha ou assimilado,
ou mesmo antecipado, sendo, portanto, improcedente os pruridos de reforma
e atualização da Doutrina.
Penso que Chibeni é demasiado "otimista" quanto à robustez
kardecista. Novamente, esse é o ponto que retomarei mais abaixo, ou seja:
em que pontos o kardecismo parece em descompasso com o conhecimento científico
mais estabelecido.
4. As deficiências das chamadas "ciências psi"
Todas as teorias que pretendem elucidar os
fenômenos mediúnicos, alheias à Doutrina Espiritista, pecam pela sua insuficiência
e falsidade.
Emmanuel
Essa assertiva de Emmanuel, que abre o Capítulo XIV
do primeiro livro que nos legou por via mediúnica (Emmanuel, psicografado
por Francisco Cândido Xavier.), há mais de cinqüenta anos, pode, a alguns,
parecer demasiadamente forte.
Na verdade a afirmação de Emmanuel não foi exatamente
essa citada acima. O que ele disse (na cópia que eu possuo do livro em questão)
foi: "Todas as teorias que
pretendem elucidar os fenômenos mediúnicos, alheios à Doutrina Espiritista,
pecam pela sua insuficiência e falsidade". Do jeito que está escrito no livro, está sendo afirmado
que os fenômenos mediúnicos são alheios à doutrina espiritista, o que não
creio ser o que Emmanuel quis dizer, obviamente, porque seria um absurdo.
O que ele quis de fato dizer é, também, a meu ver um absurdo, pois da existência
de muitos erros nas obras kardecistas, podemos no mínimo concluir que o espiritismo
kardecista também peca pela insuficiência e falsidade (vide a página kardec1.htm e kardec2.htm).
A primeira linha de pesquisa não espírita dos fenômenos
espíritas (anímicos e mediúnicos) que chegou a constituir uma "escola" foi
a Metapsíquica, que se desenvolveu nas duas primeiras décadas desse século
e culminou com a publicação em Paris em 1922 do clássico Traité de Métapsychique,
de Charles Richet. Logo após, essa escola foi cedendo lugar à Parapsicologia,
cujo pioneiro foi o norte-americano J. B. Rhine, que em 1937 publicou seu
New Frontiers of the Mind. De lá para cá, sob a inspiração dessa disciplina,
surgiram e continuam surgindo, em vertiginosa multiplicação, várias outras
linhas de investigação dos chamados "fenômenos paranormais". Talvez não
seja exagero afirmar que elas são quase tão numerosas quanto os pesquisadores,
cada um com seu "sistema" próprio. Denominaremos aqui, por simplicidade,
de ciências psi o conjunto de tais sistemas, muito embora, como veremos,
não sejam ciências genuínas.
Entre os traços comuns dessas disciplinas, destacaríamos
a pretensão à cientificidade, a suposição de que aderem ao "método científico",
o emprego de métodos quantitativos e de aparelhos, uma certa aversão a "teorias"
etc.
Fiquei com a forte impressão de que Chibeni desconhece,
ou não estudou a fundo, as tais "ciências psi" que condena. Seria interessante
se ele lesse os mais recentes livros de Dean Radin, The
Conscious Universe (1997) e Entangled
Minds (2006), bem como o livro edição especial do Jounal
of Consciousness Studies, Psi
Wars (2003). Chibeni não citou, em sua bibliografia, nenhum livro de
parapsicologia. Há coisas muito boas, muitos bons resultados, na parapsicologia
atual. Mas, de fato, a parte de "teorização" é altamente deficitária. Contudo,
assim o é porque é assim que tem que ser. Até que apareça uma boa teoria
parapsicológica, não adianta colocar uma teoria falsa para tentar tapar o
Sol com a peneira.
Para ilustrar essa situação, consideremos agora alguns
exemplos concretos dos equívocos em que incorrem essas pretensas ciências.
a) Seguindo a velha "receita", procuram acumular fatos
sobre fatos, sem o auxílio de um corpo teórico ordenador. Vimos acima quão
inócuo e anti-científico é esse procedimento, e quão bem Kardec compreendeu
tal realidade.
Kardec nunca advogou teoria a qualquer custo. Se uma
teoria não é, com toda a honestidade intelectual, encontrada, então não há
como, em ciência verdadeira, se colocar uma peneira como se fosse um para-Sol.
Há muitas e muitas décadas os cientistas convivem com uma altamente desconfortável
ausência de teoria física: não há uma teoria que concilie a Teoria da Relatividade
com a Mecânica Quântica. Busca-se tal teoria. Mas não se finge que se achou
tal teoria. Obviamente, se os parapsicólogos abandonaram o paradigma espírita,
isso não foi exclusivamente por "culpa" deles. Houve também uma culpazinha
nada discreta dos fenômenos em si (ou seja, dos pretensos espíritos).
b) Quando explicações são dadas, são-no fragmentariamente,
cada fato sendo "explicado" por uma hipótese isolada. Desse modo, mesmo se
artificialmente agruparmos essas hipóteses, não formaremos senão um todo
inconsistente, o que viola a própria Lógica. A moderna Filosofia nem mesmo
considera explicações genuínas "explicações" isoladas de fatos.
Ossos do ofício... Fazer o quê? Inventar teorias falsas
é que não vai ajudar.
c) As explicações são, via de regra, ainda mais fantásticas
do que os fatos a que se propõem explicar.
Não exatamete. Pelo menos não sempre. Por exemplo,
nos experimentos para se testar "telepatia", a teoria que aparece é que duas
pessoas vivas podem enviar seus pensamentos uma para a outra. Isso em si
já é uma proto-teoria. Ausência completa de teoria seria se meramente afirmássemos
que houve uma co-ocorrência. A partir do momento em que postulamos uma co-relação,
já estamos entrando no campo da teorização.
Outro tipo de pseudo-explicação comumente encontrada
são as explicações puramente nominais: carecem de qualquer substância, consistindo
unicamente do emprego de fraseologia excêntrica na descrição dos fenômenos.
Emmanuel profliga semelhante vício filosófico no parágrafo que segue imediatamente
ao que abre esta seção:
Isso provavelmente se refere a Waldo Vieira... Mas
muito da moderna parapsicologia (salvo Quevedo et al...)
está livre desse problema.
Em vão, procura-se complicar a questão com
termos rebuscados, apresentando-se as hipóteses mais descabidas e absurdas
[...].
d) Quando "teorias" são fornecidas, não dão conta de
todos os fatos. Aqui também Kardec já alertou (O Livro dos Médiuns, parágrafo
42):
Ossos do ofício...
O que caracteriza uma teoria verdadeira é poder
dar razão de tudo. Se, porém, um só fato que seja a contradiz, é que ela
é falsa, incompleta, ou por demais absoluta.
É esse ponto acima que me faz ver as afirmações (teorias
espíritas) de Kardec como, sim, de fato científicas, mas já refutadas...
Mas como já disse, esse ponto ficará para ser explicitado mais abaixo.
e) Muitos fatos relevantes simplesmente não são reconhecidos.
Isso pode resultar: i de idéias preconcebidas, como no caso daquelas que
negam a priori a possibilidade de sobrevivência do ser, e portanto
não investigam uma vasta quantidade de fenômenos relativos a ela. (Esse problema
atinge as raias do absurdo no horror que alguns investigadores têm pelos médiuns
- exatamente o manancial mais abundante de fenômenos de que se dispõe!); ou
ii. da falta de uma teoria que guie na busca e análise dos fatos. Vimos acima
com Kardec quão longe está o Espiritismo de incorrer em semelhantes enganos.
Muitos pesquisadores parapsicológicos, por vezes chamados
de pesquisadores psi, estão bem longe de tal vício acima. Na verdade, qualquer
bom pesquisador, em qualquer área, deve buscar não incorrer em tal vício.
f) Emprego de técnicas de investigação inadequadas.
O caso típico e mais importante é o recurso ao "método quantitativo". Como
se sabe, tal método constitui uma das maiores bandeiras da Parapsicologia
e demais "ciências psi", que julgam assim estar seguindo os afortunados caminhos
da Física e da Química.
Chibeni parece desconhecer os fatores que levam a parapsicologia
a buscar o "quantitativo". Infelizmente, o qualitativo pode ser altamente
ilusório, e nos levar a conclusões imensamente equivocadas. Na verdade, até
o quantitativo pode gerar isso, especialmente quando nossos estudos não são
solidamente embasados por uma estatística robusta.
Ora, se indubitavelmente a análise das quantidades desempenha
nessas ciências um papel importante (embora não exclusivo!), não se segue
daí que deva ser igualmente frutífero no estudo de uma ordem de fenômenos
completamente diferente. De fato, são, neste caso, de todo dispensáveis (para
dizermos pouco). É até mesmo ridículo querer substituir a prova cabal fornecida
por uma manifestação inteligente (como por exemplo uma carta que contém informações
detalhadas de episódios e coisas desconhecidas)
Esse acima é um raro momento onde Chibeni fala concretamente
do método kardecista (apesar do título do artigo ser "A Excelência Metodológica
do Espiritismo"). A questão então é toda essa: temos que ver essa carta
(e as similares), e aquilatar seu peso empírico. Na maior parte das vezes,
o peso será nulo. Em muitas outras não... Ou seja, eu sou das pessoas que
acredita que existem boas evidências para a hipótese espírita (no sentido
geral, que chamarei de hipótese espírita básica ou seja: a hipótese
de que algo da mente humana - ou da mente de alguns de nós
humanos - sobrevive à morte física durante algum tempo, anos, décadas, e talvez
séculos. Por mais tempo que isso? Não tenho dados para afirmar que sim. E
além de sobreviver, esse algo pode se comunicar por vezes conosco, ou com
alguns de nós). Contudo, mesmo que haja algo de aparentemente "sobrenatural"
na carta, talvez a hipótese espírita básica não seja a mais adequada.
Algumas hipóteses alternativas mais simples (teorias) podem, em alguns
casos, ser plenamente satisfatórias, e seriam, em princípio, preferíveis.
Algumas características do fenômeno (da Carta) podem parecer conflitantes
com a hipótese espírita básica (como talvez pudesse ser um exemplo
o Cardeal de Barcelona se manifestando logo após sua morte para pedir desculpas
a Kardec por ter queimado os livros kardecistas...). E isso apenas com relação
à hipótese espírita básica! A Teoria Espírita Kardecista é
astronomicamente mais elaborada que esta última, o que acaba incorporando
uma imensidão de problemas e fardos adicionais...
Por exemplo, o que pensar de um "espírito superior"
que, indagado a respeito dos habitantes do "México insular" (ilhas primeiro
descobertas por Colombo, nas atuais Bahamas) resolve falar do México
continental (onde Colombo nunca esteve) e acaba discorrendo sobre os...
Incas! Talvez a Teoria Espírita Kardecista devesse ficar pelo menos
minimamente abalada se dissermos que tal "espírito superior" teve essa sua
comunicação registrada na Revue Spirite de agosto de 1864, página
241, em artigo intitulado "Perguntas e Problemas: Destruição dos Aborígenes
do México", e que seu nome era... Erasto (que, de quebra, ainda afirmou
que os Incas foram dizimados devido à sua indolência evolutiva).
por medidas de desvios estatísticos em experimentos
de identificação de cartas de baralho, ou similares. Não que estas últimas
sejam irrelevantes; mas a evidência que podem dar é imensamente mais fraca
e duvidosa do que a que resulta das manifestações inteligentes, e mesmo de
efeitos físicos extraordinários produzidos através de um médium possante.
(Parece estarmos aqui na situação de guerreiro que, dispondo de um moderno
canhão, prefira servir-se de um tosco estilingue...)
Sou dos que acreditam que tais manifestações inteligentes
(exemplo bem estudado: médium Sra. Piper) e físicas (exemplo que creio ser
robusto: Daniel Dunglas Home) de fato existem. Contudo, elas são imensamente
raras. Por exemplo: provavelmente Chibeni nunca se apercebeu disso, mas...
não existe sequer um único exemplo bem descrito de fenômeno paranormal
(ou sobrenatural, ou anômolo, ou etc) em toda a obra de Kardec, incluindo
todos os livros por ele publicados e toda a Revue Spirite
de janeiro 1858 até abril de 1869. Todo o exuberante castelo de conhecimentos
kardecistas foi construído em cima de fenômenos de veracidade frágil e questionável,
e de interpretação duvidosa. Diante disso, é claro que pequenos desvios estatísticos
bem capturados são altamente desejáveis para quem quer conhecer a verdade
dos fatos do Universo.
g) Recurso desnecessário e perigoso a aparelhos sofisticados.
Não obstante de inegável valor nas investigações da matéria, como mostram
os notáveis avanços da Física e da Química, a prescindibilidade de aparelhos
no estudo dos fenômenos espíritas ficou evidenciada pelas considerações expendidas
no item anterior. Além disso, há mesmo riscos em sua utilização. Primeiro,
tal utilização pode encobrir deficiências metodológicas profundas, produzindo
uma ilusória impressão de rigor, de cientificidade.
Alguns aparelhos acabam sendo necessários e interessantes.
As salas onde ocorrem as sessões para se testar telepatia sob o protocolo
metodológico Ganzfeld são um bom exemplo. Igualmente os equipamentos geradores
de eventos aleatórios (incluindo decaimento radiativo) usados em testes de
micro-PK (ou de precognição usando geradores de números pseudo-aleatórios).
Também eletroencefalogramas e equipamentos de ressonância magnética funcional
(fMRI) têm se mostrado bem proveitosos.
Depois, e mais importante, do ponto de vista epistemológico
(ou seja, da teoria do conhecimento), as observações por meio de aparelhos
ocupam um nível bem mais baixo na escala da confiabilidade do que aquelas
que podem ser alcançadas de modo imediato.
Essa afirmação me parece deveras estranha. Na verdade,
o próprio corpo humano se constitui em um "aparelho" cujo funcionamento podemos,
surpreendentemente, conhecer bem aquém do que normalmente imaginamos. O
uso de aparelhos, se fosse contraproducente, jamais seria implantado em qualquer
área. Aparelhos podem amplificar sinais que para nós são de difícil detecção,
ou estabilizar sinais que para nós são por demasiado oscilantes ou fugazes,
etc. É lógico que há que se utilizar e conhecer devidamente o aparelho.
Quer seja ele um aparelho eletrônico, ou um "aparelho fisiológico" (ou seja,
o nosso próprio corpo e órgãos dos sentidos).
Essas considerações epistemológicas explicam, por sinal,
a grande estabilidade do núcleo de princípios fundamentais do Espiritismo,
quando comparado aos das teorias científicas, pois repousam em fenômenos
extremamente básicos do ponto de vista epistêmico, com o mesmo grau de certeza,
quanto, por exemplo, as proposições de que temos agora uma folha de papel
diante de nós, de que há nela algo escrito, de que nos achamos sentados etc.
Medeia vasta distância conceitual entre proposições desse tipo e, por exemplo,
aquelas sobre a estrutura dos átomos, dos buracos negros, sobre o mecanismo
das mutações genéticas etc.
Igualmente, é muito distante do "básico epistêmico"
afirmações como "foi um espírito quem escreveu essa carta através da médium"
ou "existe um Deus omnipotente, omnisciente, e omnibenevolente que criou
esse Universo".
h) Referência a conceitos e teorias científicas obsoletos.
A Física deste século introduziu, como já dissemos, alterações radicais em
suas teorias, e conseguintemente em nossa visão do mundo. Conceitos que faziam
parte da Física Clássica, como os de espaço e tempo absolutos, partículas,
campos etc., foram ou totalmente abandonados, ou revistos profundamente,
por não mais servirem às novas teorias, não dando conta dos fenômenos observados.
Assim, é inacreditável que haja pesquisadores das "ciências psi" tentando
elaborar "teorias" e "modelos" para o Espírito baseados em noções de partículas
e campos, e ainda mais, com a pretensão de estarem seguindo a Ciência! Vemos
aqui uma vez mais a lucidez de Kardec e dos Espíritos que o auxiliavam, ao
não vincularem os princípios centrais do Espiritismo a nenhuma dessas noções.
Assentaram-no, antes, em proposições básicas, "fenomenológicas", como dizem
os filósofos, exatamente por serem estáveis.
Problema bem assinalado, e ausente nos bons pesquisadores
psi.
i) Desprezo pelo passado: cada pesquisador em geral
reinicia as investigações a partir do "nada", como se outros já não tivessem
efetuado constatações dignas de confiança. Se a dúvida equilibrada representa
prudência, quando se torna irrestrita e irrefletida, aliando-se à presunção
e ao orgulho, inviabiliza o conhecimento. Se na Ciência se tivesse adotado
semelhante atitude, não se teria saído de sua pré-história.
Problema bem assinalado, e ausente nos bons pesquisadores
psi.
j) Ignorância da relevância dos fatores "morais" na
produção de certos fenômenos. Kardec não tardou reconhecer, em seus estudos,
a influências por vezes crucial de fatores ligados à harmonia de pensamento
dos médiuns, experimentadores e assistentes, aos objetivos a que se propõem,
à sua condição moral etc. O assunto é abordado, entre outros lugares, no
Capítulo XXI de O Livro dos Médiuns, onde Kardec ressalta a "enorme influência
do meio sobre a natureza das manifestações inteligentes" (parágrafo 233).
Essa influência vem sendo também ilustrada e enfatizada na boa literatura
mediúnica, que nos mostra em detalhe a complexidade do trabalho dos Espíritos
na produção dos fenômenos. Assim, apenas para tomar um dos inúmeros exemplos,
lembremos a descrição que André Luiz dá em Missionários da Luz (Cap. X) da
profunda perturbação causada nos trabalhos de materialização a que presenciava
pelo simples ingresso no recinto de um homem interiormente desequilibrado,
e, depois, pelos pensamentos descontrolados dos participantes da reunião.
Diante da surpresa, o Instrutor Alexandre elucida (destacamos):
Nestes fenômenos, André, os fatores morais
constituem elementos decisivo de organização. Não estamos diante de mecanismos
de menor esforço e, sim, ante manifestações sagradas da vida, em que não
se pode prescindir dos elementos superiores e da sintonia vibratória.
Nem todos os pesquisadores psi apresentam conduta que
os leve a se distanciar dos "fatores morais". Talvez até por isso que alguns
consigam bons resultados. E há de fato, nos meios psi, um correspondente a
esse "elemento moral", que é o fator do pesquisador. Acredita-se
que um dos elementos que influencia no resultado é o próprio pesquisador,
com sua personalidade e seu modo de se relacionar com o objeto de estudo parapsicológico
(especialmente com as pessoas).
5. O Espiritismo é religioso.
Nesse ponto, Chibeni passa a discorrer sobre o aspecto
religioso do espiritismo (kardecismo), o que está fora do meu objeto de estudo
e questionamento.
As religiões ordinárias "justificam" as normas morais
que propõem recorrendo à autoridade desse ou daquele indivíduo ou instituição;
são dogmas, portanto artigos de fé a serem aceitos sem exame.
Já o Espiritismo fundamenta o corpo de seus preceitos
éticos no conhecimento que cientificamente alcança das conseqüências das
ações humanas ao longo da existência ilimitada dos seres, conjugado à cláusula
teleológica de que todos almejam a felicidade.
Aqui, apesar de estar discorrendo sobre o aspecto religioso,
Chibeni afirma que os preceitos éticos do kardecismo advém do seu conhecimento
científico. De fato. O mesmo conhecimento científico que nos revelou que
Colombo, em 1492, encontrou Incas preguiçosos nas Bahamas...
No Item VIII Kardec reitera:
Razão, portanto, tivemos para dizer que o Espiritismo,
com os fatos, matou o materialismo. Fosse este o único resultado por ele
produzido e já muita gratidão lhe deveria a ordem social. Ele, porém, faz
mais: mostra os inevitáveis efeitos do mal e, conseguintemente, a necessidade
do bem.
Moisés já dizia: Não Matarás! Kardec afirmou que o
espiritismo matou o materialismo, e Richard Dawkins/Steven Pinker, mais recentemente,
afirmaram que o materialismo matou o espiritismo. Talvez já fosse hora de
menos matanças e mais indagações e pesquisas...
Encerrando essas notáveis citações de Kardec, que aliás
poderiam estender-se ainda muito, adentrando, por exemplo, O Céu e o Inferno,
obra inteiramente dedicada ao estudo teórico e experimental das conseqüências
das ações humanas, voltamos ao comentário às Questões 147 e 148 de O Livro
dos Espíritos, que fecha com chave de ouro estas nossas reflexões:
Bem oportuno citarmos o livro "O Céu e o Inferno".
Cito um trecho meu do texto kardec2.htm, onde eu
falo sobre esse livro: No meu entendimento,
e sob uma ótica estritamente científica (e olhando o kardecismo como uma
doutrina que se afirma também como uma ciência) considero que esse livro
jamais deveria ter sido escrito. Nele Kardec transforma o possível (a hipótese
espírita kardecista) no inegável (o kardecismo como fato incontestável). Discorre
sobre a vida de pessoas reais no pós morte, traça julgamentos, incorre em
momentos a meu ver de falta de ética para com pessoas que viveram. Enfim,
todo um leque de problemas nada discretos. Há alguns casos onde é bem possível
que alguém que tenha lido o livro de Kardec na época tenha conseguido identificar
de quem Kardec falava. Lamentável. Mas creio que nada diferente dos padrões
da época (talvez melhor). E é também
oportuno repetir: não existe sequer um único exemplo bem descrito
de fenômeno paranormal (ou sobrenatural, ou anômalo, etc) em toda a obra
de Kardec, incluindo todos os livros por ele publicados e toda a Revue Spirite de janeiro 1858 até abril de 1869.
Referências Bibliográficas
Assinalo novamente que não
consta da bibliografia citada obras que tratem das ditas "ciências psi".
Breves Comentários sobre o Artigo "Ciência Espírita"
http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482/ciespi.html
Acessado em 17 de novembro de 2007
Inicio ressaltando que, apesar de também esse artigo criticar as "pseudo-ciências do espírito" (parapsicologia aí incluída), não há na bibliografia obra relevante ao tema.
Contrariamente ao que alguns críticos mal informados
acerca do Espiritismo e das teorias científicas contemporâneas alegam, o
Espiritismo não conflita com qualquer uma das teorias científicas maduras,
quer da Física, quer da Química ou da Biologia.
Bem, em três pontos mais acima eu disse que falaria
sobre o problema, digamos, dos fatos com as quais o kardecismo "conflita".
Vou deixar esse comentário para mais abaixo ainda...
Note-se que não icluímos o tópico "comprovação da existência do espírito". A razão é evidente: trata-se de uma questão já resolvida, na qual não devem as investigações estacionar. Foi uma etapa preliminar, e quem não a percorreu não pode, em boa lógica, pretender-se espírita, ou estar realizando pesquisas espíritas.
Esse acima é, sem dúvida, um problema central
para aquilatarmos se o kardecismo pode, já, ser considerado como ciência.
É legítimo considerarmos que o paradigma kardecista é científico? Igualmente,
é legítimo considerarmos que os paradigmas da Umbanda, ou do Candomblé, ou
do Vudu haitiano, ou do Shamanismo, são paradigmas científicos? Kardec considerou
que havia diante dele provas (provas!) de que os espíritos existem.
E mais, considerou que havia igualmente provas para uma imensidão de afirmações
adicionais sobre tais espíritos, e até mesmo sobre uma entidade bem além
de tais espíritos, a saber, Deus (notem que não há, que eu saiba, em qualquer
parte da obra de kardec, qualquer relato de um espírito que tenha de fato
visto Deus!). O problema disso tudo é que o critério que Kardec usou para
considerar determinadas coisas como provas foi por demasiado um critério
frouxo, e aberto a falhas. Como eu assinalei fartamente em kardec1.htm, Kardec construiu seu paradigma utilizando-se
de uma metodologia altamente sujeita a falhas (a saber: 1- confiança nos
espíritos com linguagem nobre e digna. 2- confiança na sua própria lógica.
3- confiança no "consenso" dos espíritos), e além disso utilizou-se de tal
metodologia (já falha) de modo falho (usou de modo falho a metodologia falha),
e pior, em alguns pontos nem mesmo usou tal metodologia. É claro que, desta
maneira, fica fácil chegarmos à conclusão de que "existem espíritos", assim
como ficaria igualmente claro chegarmos a muitíssimas outras conclusões similares
(como por exemplo "Zeus existe", "Saci-pererê é um ser àparte na criação divina",
"anjos e demônios existem", etc). Contudo, ao analisar de fato a maneira
como se dá o fenômeno mediúnico, em suas forças e fraquezas, muitos pesquisadores
chegaram a uma conclusão bem diferente da de Kardec. O pesquisador psi e
filósofo Stephen Braude relata bem esse ponto em seu livro "Immortal
Remains" (2003). Mesmo nos melhores e mais bem estudados casos (como o da Sra Piper ou o da Sra Leonard), hipóteses alternativas
à hipótese espíritos podem parecer até mais apropriadas, pelo menos em muitos
dos incidentes estudados. E muitíssimo mais temerário, além de se decretar
que a existência de espíritos já está cientificamente provada, é extendermos
tais afirmações "científicas" para muitíssimo além disso (como quando Kardec
alega a existência do perispírito e descreve em minúcias suas propriedades,
ou quando fala sobre a origem e evolução dos espíritos e hierarquia dos espíritos,
ou quando fala sobre Deus e seus atributos e propósitos, etc, etc, etc).
Breves Comentários sobre o Artigo "O Paradigma Espírita"
http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482/paresp.html
Acessado em 17 de novembro de 2007.
Inicio igualmente ressaltando que, apesar de também esse artigo criticar as "pseudo-ciências do espírito" (parapsicologia aí incluída), não há na bibliografia obra relevante ao tema.
Foi a fase pré-paradigmática das pesquisas do espírito.
Tal fase encerrou-se com o trabalho de Allan Kardec. Ele nos legou um paradigma
admiravelmente coerente, abrangente, empiricamente adequado e heuristicamente
fértil, que não deixa nada a desejar aos mais bem sucedidos paradigmas das
ciências ordinárias, como a termodinâmica, o eletromagnetismo, as teorias
da relatividade, a mecânica quântica, etc.
Essa afirmação acima possui um peso tão, digamos, imenso,
que faz-se necessário darmos uma pausa e tomarmos fôlego para refletirmos
sobre como melhor abordá-mo-la. Vamos olhá-la novamente: o paradigma kardequiano
é similar em qualidade aos paradigmas da termodinâmica, do eletromagnetismo,
das teorias da relatividade, e da mecânica quântica, no que tange à sua coerência,
abrangência, adequação empírica, e fertilidade heurística...
Bem, com relação a isso, gostaria apenas de ressaltar
dois pontos: primeiro, os demais paradigmas citados, ao que
eu saiba, não foram construídos na base do "O espírito respondeu que C é
a alternativa correta, então eu vou relatar que os espíritos afirmaram que
B é a alternativa correta" [Que foi o que Kardec fez diversas vezes, ainda
que talvez não conscientemente. Exemplos: 1- No livro dos Médiuns um
espírito disse textualmente que atravessou uma parede ou porta com um determinado
objeto, e Kardec resolveu interpretar que isso não ocorreu de fato e que
isso seria inclusive impossível, para isso se valendo da opinião contrária
de...Erasto, aquele dos "Incas indolentes nas Bahamas". 2- Numerosos espíritos,
por mais de dez médiuns diferentes, afirmaram que a alma humana não provém
da alma dos animais - Livro dos Espíritos primeira edição de 1857 - e Kardec
resolveu, na segunda e terceira edições do livro em 1860, colocar pura e
simplesmente que a alma humana provém da alma dos animais, sem esclarecimentos
a respeito da "sutil" diferença entre a primeira edição e a segunda e terceira
edições. Imagine se Darwin, na primeira edição da "Origem das Espécies",
afirmasse que "O homem não provém do 'macaco'
", e na segunda edição ele afirmasse que "O homem provém
do 'macaco' "..., sem sequer explicar o processo de mudança
de opinião; ou igualmente, se Einstein afirmasse, na sua teoria da relatividade,
que "É possível mover-se mais rápido que a luz", e, um ano após, afirmasse
que "É impossível mover-se mais rápido que a luz", igualmente sem explicações
quanto ao processo de mudança de opinião. 3- Kardec
alterou (ou participou ativa ou passivamente da alteração, ou publicou a
alteração sem atentar para a gravidade do fato) o conteúdo de mensagem atribuída
a Jesus de Nazaré, corrigindo estilo, e modificando idéias...; para todos
esses ítens, vide kardec1.htm]. O segundo
ponto que eu gostaria de assinalar é que tais paradigmas citados por
Chibeni (mecânica quântica e etc) não possuem um acúmulo de anomalias tão
grande quanto o paradigma kardecista, e nem sofrem com uma pobreza (ou dubiedade)
de evidências empírico-observacionais como o paradigma kardecista. Esses
pontos comentarei após o próximo parágrafo.
Primeiro, o exame isento e criterioso da situação mostra
de forma inquestionável que o Espiritismo não experimenta, nem jamais experimentou,
qualquer processo de acumulação de anomalias, e muito menos em seus pontos
essenciais, acumulação essa que constitui, segundo Kuhn, um pré-requisito
para o desencadeamento de uma crise, capaz de justificar a proliferação de
teorias alternativas, e, eventualmente, a substituição do paradigma.
Como eu disse mais acima, minha visão dos fatos é diametralmente oposta à de Chibeni com relação a este ponto. Entendo que o kardecismo sofre de forte pobreza de evidências empírico-observacionais e, igualmente, de grande acúmulo de anomalias:
1- Uma anomalia deveras forte para o paradigma kardecista, no meu entendimento, é o próprio exemplo citado por mim mais acima do grave equívoco cometido pelo "espírito" tido como "superior" pelo grupo de Kardec, ou seja, o equívoco de Erasto sobre os aborígenes encontrados por Colombo. Em kardec1.htm eu cito outros exemplos similares, especialmente sobre o "espírito" São Luís, que era o presidente espiritual da Sociedade Espírita de Paris (fundada e dirigida por Kardec). Ou seja, todo e qualquer erro oriundo de espíritos em situações onde se deveria esperar que não houvesse tal erro se constitui em uma anomalia para o paradigma kardecista, e o enfraquece como teoria científica (ou, alternativamente, refuta - falsifica - tal paradigma).
2- Um outro problema que se constitui em um anomalia para o paradigma kardecista é a própria proliferação de interpretações diferentes do fenômeno mediúnico. A expectativa do espiritismo na época de kardec era de que se caminhasse para uma unidade de visões. A existência, por muitas e muitas décadas, de interpretações alternativas, mesmo no Brasil, como o Candomblé, a Umbanda, e o Espiritismo a là Ramatis, foge totalmente das expectativas kardecistas do século XIX, de modo claramente anômalo.
3- O aumento do conhecimento sobre a estrutura e funcionamento do cérebro apresenta também anomalias para o paradigma kardecista. A, digamos, "base cerebral" (neuronal) de coisas como as emoções e o caráter situa-se muito além do que era imaginado pelo espiritismo na época de kardec. O livro do neurologista Antonio Damasio, "O Erro de Descartes", descreve um caso inclusive bem antigo, de um homem chamado Phineas Gage, que ilustra tal problema de forma dramática.
4- Alguns fenômenos neuronais parecem difíceis de conciliar com o paradigma kardecista, como o estado de consciência dos "split-brain" (neste link), ou seja, pessoas submetidas ao seccionamento do corpo caloso no centro do cérebro e que passam a ter seus dois hemisférios neocorticais funcionando sem se comunicarem um com o outro. Em um caso, o lado direito do cérebro afirmava querer ser um corredor automobilista, enquanto o lado esquerdo asseverava querer ser um desenhista... Além disso, em pleno escândalo Watergate, o lado esquerdo afirmava gostar de Nixon; contudo, o lado direito afirmava não gostar... (neste link). Ou ainda o caso de um marido que, com sua mão esquerda, tentava agredir sua esposa, enquanto sua mão direita tentava protegê-la!
Vou resgatar abaixo pontos que deixei não comentados mais acima:
a necessidade que ele tem de não entrar em descompasso
com o progresso científico.
Agora é certo que não há nenhum princípio científico
estável, nenhuma "verdade prática", que o Espiritismo não tenha ou assimilado,
ou mesmo antecipado, sendo, portanto, improcedente os pruridos de reforma
e atualização da Doutrina.
Como assinalei acima, alguns fatos conhecidos atualmente não foram devidamente "assimilados" pelo paradigma kardecista, notadamente no campo da neurologia. Há também diversas questões que surgem do atual conhecimento da teoria da relatividade e da mecânica quântica que podem talvez apresentar anomalias (ou candidatos a anomalias) para o paradigma kardecista. Poderíamos (ou melhor, deveríamos...) indagar aos espíritos, já que o perispírito é feito de matéria ordinária (ainda que "quintessenciada"), o que ocorreria se a Terra fosse engolida por um buraco negro (ficariam os espíritos "pelados"? Ou talvez fossem subitamente transmutados em Espíritos Puros...). Ou ainda, se dois gêmeos idênticos, altamente similares em personalidade, forem separados, um deles embarcando em viagem a velocidade muito próxima da da luz e retornando, digamos, dez anos depois. O gêmeo astronauta poderia viajar em uma velocidade que levasse a que, na Terra, tivessem se passado cem milhões de anos, enquanto para ele teriam se passado apenas dez anos. Seu irmão gêmeo seria já então um Espírito Puro (incluindo talvez também todos os bichos de estimação que deixou para trás, seu cachorro, seu papagaio, seu periquito, seu peixinho dourado, sua minhoca, e quiçá mesmo sua cultura de bactérias...). Ou ainda diante do impossível ressaltado por Erasto, de corpos materiais se atravessarem uns aos outros, não se constituiria em anomalia o tunelamento quântico?
O que caracteriza uma teoria verdadeira é poder dar
razão de tudo. Se, porém, um só fato que seja a contradiz, é que ela é falsa,
incompleta, ou por demais absoluta.
Toda e qualquer "anomalia" é um candidato a cumprir essa função descrita por Kardec acima. Apenas temos que ter muita cautela ao tratarmos desses assuntos, pois que é comum determinados fatos serem apenas aparentemente anomalias (falsas anomalias), como o caso do movimento de Urano (falsa anomalia para a mecânica de Newton), ao invés de verdadeiramente anomalias, como no caso do movimento de Mercúrio (anomalia verdadeira para a mecânica de Newton).
Contrariamente ao que alguns críticos mal informados
acerca do Espiritismo e das teorias científicas contemporâneas alegam, o
Espiritismo não conflita com qualquer uma das teorias científicas maduras,
quer da Física, quer da Química ou da Biologia.
Eu mesmo costumo dizer coisas bem parecidas com isso dito acima por Chibeni. Mas quando eu falo tais coisas, o que eu nego é que tais ciências provem que a hipótese espírita básica é impossível. Eu não nego que haja confito. Há. E forte. Por exemplo, a idéia de espíritos passa totalmente ao largo da evolução neodarwinista; e mais, a existência de espíritos é uma redundância colossal ao aparato neuronal, conforme atualmente entendido e conhecido pela ciência. A imortalidade dos espíritos pode também, talvez, conflitar com a segunda lei da termodinâmica (entropia). Talvez.
No caso dos princípios espíritas básicos, como a existência
e sobrevivência do espírito, o livre-arbítrio, a lei de causa e efeito, a
reencarnação, etc., a situação é bastante diversa. Sua confirmação independe
totalmente de aparelhos, conforme bem enfatizou Kardec, o que é uma enorme
vantagem do ponto de vista epistemológico, pelas razões esboçadas acima.
Todos esses quatro itens elencados por Chibeni acima
(1- Existência e sobrevivência do espírito. 2- Livre Arbítrio. 3- Lei de
causa e efeito - creio que entendida como: "carma". 4- Reencarnação) estão
muito distantes de uma observação epistêmica básica. A distância entre eles
e, por exemplo, "a constatação de que o fogo queima" é astronômica (ou que
"o Sol existe"). Sem falarmos que as proposições como "o Sol existe" podem
ser altamente enganosas, como acontece de fato com uma proposição intimamente
próxima a esta, que é: "O Sol gira em torno da Terra". Podemos até traçar
um paralelo talvez fidedigno...:
O Sol
existe. |
Mais ou
menos igual, epistemicamente, a: |
Mensagens por médiuns
em transe existem, e parecem se situar além do que a percepção sensorial
normal pode fornecer. |
O Sol
gira em torno da Terra. |
Mais ou menos igual,
epistemicamente, a: |
As mensagens dos médiuns
vêm de espíritos desencarnados. |
São proposições da mesma classe epistêmica que, digamos,
as proposições de que o Sol existe, de que o fogo queima, a cicuta envenena,
etc. Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais
não difere em nada das inferências que fazemos a partir dos fenômenos ordinários.
Quando, por exemplo, o carteiro traz à nossa casa um papel no qual lemos
certas frases, não nos acudirá a idéia de que elas não foram escritas por
um determinado amigo, quando relatam fatos, contêm expressões e veiculam
pensamentos peculiares e íntimos. Exatamente o mesmo se dá com os variados
e abundantes casos de psicografia de que somos testemunhas. Não constitui
exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa de uns poucos casos
dessa espécie é suficiente para eliminar qualquer dúvida quanto ao princípio
básico da Doutrina Espírita, a existência e sobrevivência do espírito.
Esse acima é o ponto crucial. Temos que analisar a
evidência real. Na obra de Kardec, como eu já disse, ela é inexistente. Em
obras posteriores, ela de fato existe, inclusive com boa qualidade. Mas é
necessário analisarmos tudo e cada coisa com imensa cautela, para não pularmos
da constatação de que o "Sol" existe (seja lá o que ele de fato for...)
para a temerária afirmação de que o "Sol gira em torno da Terra". Eu mesmo
fiz uma reavaliação altamente meticulosa de um caso de lembrança de vida
passada estudado por Ian Stevenson (o caso Imad Elawar), e cheguei à conclusão
que me pareceu possível diante dos dados existentes. Não concluí que ocorreu
reencarnação. E, igualmente, não concluí que não ocorreu reencarnação...
Como se isso não bastasse, a base experimental do Espiritismo
incorpora ainda muitos outros tipos de fenômenos, como a psicofonia, a xenoglossia,
as materializações, vidência, a pneumatografia e a pneumatofonia, etc. Além
desses fenômenos, que formam uma classe específica, a dos fenômenos espíritas,
o Espiritismo apóia-se também em inúmeros fenômenos ordinários. Referimo-nos,
por exemplo, às nossas inclinações e sentimentos, às peculiaridades de nosso
relacionamento com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes
de nossa vida, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicossomáticos,
aos sonhos, à evolução das espécies e das civilizações, etc. Entendemos que
a desconsideração desse vasto corpo de evidências a favor do Espiritismo
constitui séria omissão por parte de seus críticos e daqueles que tentam
fazer ciência não-espírita do espírito.
Cada um desses fenômenos "sobrenaturais" (anômalos)
citados acima tem que ser estudada com muita cautela, e caso a caso, meticulosamente.
Freqüentemente, há graves problemas nas "evidências". Algumas poucas vezes
não. Com relação aos fenômenos "não anômalos" citados logo após, como inclinações,
sentimentos, etc, eles tendem a se amoldar relativamente bem ao conhecimento
científico vigente, o que não quer dizer que eles não escondam reais desafios
para os paradigmas da ciência oficial. Apenas quer dizer que tais desafios,
se de fato existem, têm que ser demonstrados com clareza e robustez. Eu,
por exemplo, de imediato não vejo nenhum problema com nenhum dos exemplos
não anômalos citados por Chibeni acima.
Conclusão Geral: minha posição é de que o kardecismo (espiritismo)
está imensamente longe de possuir uma metodologia aceitável cientificamente,
que dirá uma metodologia excelente. Contudo, o kardecismo, assim como algumas
outras práticas mediúnicas similares (Umbanda por exemplo), possui uma cientificidade
potencial intrínseca de grande magnitude, que deveria ser melhor aproveitada
pelos seus adeptos com viés científico.
Julio Siqueira
18 de Novembro de 2007