Copyright ©  Julio Cesar de Siqueira Barros.

Finalisado em 11 de agosto de 2003.
Primeira revisão em 23 de janeiro de 2004.
Segunda revisão em 11 de novembro de 2004.

Terceira revisão em 20 de agosto de 2005.
Quarta revisão em 15 de novembro de 2007.
Quinta revisão em 24 de junho de 2011.

 

"Erros" em Kardec 1: Os Momentos Iniciais da "Codificação" da Doutrina Espírita por Allan Kardec, e Antecedentes Históricos Próximos.

 

Antes de realizar uma exposição de itens que me parecem "erros" nas obras de Kardec propriamente ditas (O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, etc.), tentarei analisar de modo breve as seguintes questões no presente texto:

- Que espécie de pesquisador era Kardec, ou seja, que qualidades e que defeitos ele possuía para a execução da obra à qual ele se dedicou durante os últimos quase quinze anos de sua vida, e que passou a ser conhecida como a "Codificação da Doutrina Espírita"?

- Que teoria, e que afirmações, emergiram do trabalho de Kardec?

- Como era o procedimento, ou seja, a metodologia, de Kardec no estudo dos fenômenos espíritas?

- Que espécie de erros e fraquezas potenciais essa metodologia possuía?

- E finalmente, até que ponto Kardec realmente teria se utilizado de tal metodologia? Até que ponto ele teria cometido erros ao utilizá-la? Ou ainda de modo mais extremo, teria ele em ocasiões importantes deixado mesmo de utilizá-la, adicionando desta maneira graves falhas a um método que já possuía sérias fraquezas? Um exemplo especial disso (e pouco conhecido...) seria: quais são algumas das diferenças entre a primeira edição do Livro dos Espíritos, de abril de 1857, e a segunda e "definitiva" edição, de março de 1860, e o que tais diferenças parecem indicar?


 

O Pesquisador Kardec:

Kardec possuía diversas qualidades notáveis para a realização da tarefa a que ele se propôs, e que passou a ser conhecida como a "Codificação da Doutrina Espírita". Em alguns aspectos, ele chegava mesmo a ser um homem à frente do seu tempo.

Uma impressão que sempre tive em minhas leituras das obras de Kardec, de modo claro e invariável, é a de que Kardec era um homem bom. E também, em grande medida, uma pessoa "resolvida" emocionalmente, pelo menos em muitos aspectos. É quase impossível (pelo menos para os meus olhos) identificar alguma passagem onde ele tenha incorrido em agressões diretas ou veladas motivado por rancores ou recalques mais ou menos inconscientes, como é tão comum vermos na talvez maioria de nós seres humanos. Seu discurso era moderado quanto às emoções e lúcido quanto à exposição e análise de fatos e fenômenos. Era também, como escritor, invulgarmente direto e claro para um francês, fruto provavelmente de sua bagagem educacional adquirida nos anos que, enquanto criança e adolescente, estudou no colégio de Pestalozzi, em Yverdun, Suíça, o que sem dúvida contribuiu para que ele tivesse um modo de exposição escrita muito mais anglo-saxônico/germânico do que latino (como seria de se esperar de um francês; as frases anteriores não devem ser entendidas necessariamente como uma crítica aos franceses, e sim como uma exposição das diferenças nos modos de expressão entre latinos de um lado e germânicos-anglo/saxônicos de outro). Kardec era também bastante inquiridor, bem informado a respeito dos conhecimentos científicos do mundo de então, aberto a idéias diferentes das suas, e a fenômenos que pudessem contrariar suas visões sobre o mundo material e espiritual. Não possuía uma tendência dogmática (pelo menos não fortemente), era articulado social e politicamente (no sentido da articulação micropolítica do poder nas instituições onde atuava), com óbvias qualidades de liderança. Era consciente da existência de fraudes, e da necessidade e possibilidade de identificá-las, mesmo através de conhecimentos de prestidigitação. Ele era também consciente da necessidade de uma integração do conhecimento global a respeito dos fenômenos espíritas, e igualmente consciente da necessidade de integração global da interpretação de tais fenômenos (sua conhecida preocupação com a "sanção universal dos espíritos" através de comunicações provenientes de diversos lugares e de diversos médiuns).

Essas qualidades são bem conhecidas pelos estudiosos do kardecismo. É uma lista que chega a causar grande impressão (com toda justiça), e que, penso eu, é acima de tudo verdadeira. Contudo, há também uma lista oposta, com graves conseqüências para o resultado final da obra de Kardec: a lista dos defeitos de Kardec, com a qual talvez boa parte dos estudiosos do kardecismo não vá concordar comigo tão prontamente, mas que uma leitura cuidadosa da obra kardequiana revela de modo, penso, inequívoco. Da maneira como vejo o kardecismo em sua criação e desenvolvimento, esses defeitos turvaram e minaram drasticamente os produtos potencialmente valiosos decorrentes das qualidades de Kardec, e são eles (esses defeitos) os grandes responsáveis por boa parte dos pontos fracos do kardecismo atual.

Havia algo de altamente centralizador, arbitrário e autoritário na posição e na atuação que Kardec exercia em sua relação com o espiritismo francês, com a revista de divulgação do espiritismo Revista Espírita (a Revue Spirite, da qual foi criador, diretor, e dono), e com a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (da qual foi fundador e presidente). Isso não chegava a se constituir em algo espantoso, pois vivia-se em tempos altamente autoritários e centralizadores; mas sem dúvida parece um paradoxo para com algumas das qualidades de Kardec expostas mais acima. E isso acarretou diversos problemas e desvios de rota na senda espírita francesa em meados do século XIX. De modo complementar ao exposto nas frases anteriores, Kardec era muito "sozinho" em suas pesquisas, atuações, e conclusões. Talvez o melhor exemplo de tal problema seja a elaboração e publicação do Evangelho Segundo o Espiritismo, que, segundo consta relatado em Obras Póstumas, foi confeccionado por Kardec sem que ninguém tivesse conhecimento do conteúdo e objetivo da obra até o momento da impressão. Isso apesar deste livro se constituir em um importante marco nos rumos do kardecismo.

Kardec era naturalmente limitado em seus conhecimentos e intuições psicológicas, antropológicas, e sociológicas a respeito do ser humano; afinal, vivia-se em uma época em que vários avanços nessas áreas ainda estavam por vir. Contudo, ele era também limitado um pouco além do naturalmente esperado com relação à esses mesmos itens acima, ou seja, a respeito do conhecimento da alma e da mente humana: era profundamente desconhecedor do inconsciente (ou subconsciente), com todas as graves conseqüências que isso acarreta para o tipo de estudo que ele conduzia (espiritismo-mediunismo). Igualmente, Kardec externava também idéias que hoje em dia seriam consideradas "racistas" com relação a povos indígenas e a povos negros em geral, apesar dessas idéias serem em sua época bastante comuns, sendo importante assinalar que seus sentimentos e idéias a esse respeito se situavam claramente em um bom nível de humanidade e coerência com sua visão metafísica-reencarnacionista. Mas ele, contudo, não estava isento de graves contradições mesmo com relação a isso... Um exemplo interessante é seu texto sobre a Perfectibilidade da Raça Negra em termos físicos, publicado na Revista Espírita de abril de 1862. Kardec defendia (ou concordava com) a idéia de que a "raça negra" era fisicamente inferior às "raças brancas", e que conseqüentemente recebia a encarnação de espíritos inferiores. A "raça negra" só era, segundo ele afirma nesse texto, "perfectível" (ou seja, passível de aperfeiçoamento) através de cruzamentos com as "raças brancas" (superiores). Mesmo se um espírito de grande elevação, como o de um "sábio do instituto", encarnasse entre os negros, não seria possível levar a um desenvolvimento dos "órgãos rudimentares" (entenda-se: as áreas cerebrais relacionadas à inteligência). Logo, nesse caso, a perfectibilidade seria possível apenas em um espectro muito pequeno, a menos que houvesse cruzamento com as raças superiores. Kardec desconhecia as raças negras a fundo, e apesar disso tecia considerações teóricas a seu respeito. E elaborava teorias claramente racistas, pois que eram teorias intrinsecamente (e injustificadamente) incoerentes, já que ele relegava à "raça negra" a condição de "imperfectível" enquanto não via da mesma maneira (ou pelo menos não se referia da mesma maneira) as "raças brancas". Seguindo rigorosamente a lógica de Kardec, as raças brancas só seriam perfectíveis através de cruzamentos físicos com os habitantes de Júpiter! (planeta esse considerado, de acordo com "revelações" mediúnicas que constam mesmo do Livro dos Espíritos, como o planeta onde os habitantes possuem o mais alto nível de desenvolvimento intelectual, moral, e físico de todo o Sistema Solar). Uma postura de fato coerente seria dizer de modo bem claro e direto que todas as raças são iguais, ou perfectíveis ou não.

Pelo menos professamente, Kardec era crente no indutivismo científico, ou seja, ele alegava a inexistência de idéias pré-concebidas em suas investigações (isto é, em seu modo de conduzir suas pesquisas). Tal idéia de Kardec, além de ingênua e incorreta (à luz das visões das filosofias da ciência atuais, e à luz do atual conhecimento a respeito do inconsciente - há inclusive, na área da filosofia da ciência, o termo "indutivismo ingênuo"), chega a se constituir em notável contradição para alguém que se acreditava "pré-concebido", ou seja, reencarnado: como pode alguém que é reencarnado não possuir idéias ou pelo menos intuições pré-concebidas a respeito do espiritismo?

Kardec era claramente "elitista", acreditando que o trabalho intelectual é uma forma superior de atividade humana-espiritual, e que o trabalho manual é algo inferior a esse respeito. Existem críticas a seu respeito que dizem que ele relegava certo desprezo, no seus estudos do espiritismo, aos fenômenos físicos e à experimentação prática correlata (vide o texto do site kardecista Novavoz, onde consta um prefácio do livro Os Quatro Evangelhos de Roustaing constante da edição de 1920, prefácio esse que teria sido, segundo Novavoz, posteriormente expurgado pela FEB - http://novavoz.org.br/polemico-06.htm).

Em alguns pontos de suas obras, Kardec claramente não percebia certos erros, incoerências, ou implicações de certos fatos. Chegava mesmo a relatar e insistir em afirmações erradas que poderiam ter sido facilmente refutadas por uma observação (e raciocínio) um pouco mais atenta de sua parte. Era confiante em demasia na sua própria lógica (e confiante em demasia na "lógica" em si). Igualmente, não sendo médium, era confiante em demasia na sua intuição, ou seja, na sua capacidade de através do uso da sua intuição humana normal entender o que era apropriado para o movimento espírita que dirigia. Em pelo menos alguns pontos importantes, alterou o conteúdo de trechos de seus livros espíritas sem motivos claramente expostos, itens esses de graves conseqüências para a natureza e credibilidade do espiritismo (vide a questão da "tendência inata para o homicídio", presente na primeira edição do Livro dos Espíritos, de 1857 e retirada na segunda, a que se tornou a definitiva, de 1860. E também o texto considerado potencialmente "não apócrifo" de autoria de "Jesus de Nazaré", segundo relatado na parte final do Livro dos Médiuns, e que aparece novamente no Evangelho Segundo o Espiritismo com a assinatura alterada para "Espírito de Verdade" e principalmente com estranhas alterações no corpo do texto...).

Em resumo, a meu ver, Kardec erigiu todo um sólido e robusto sistema de crenças (que ele rotulava de "Fé Raciocinada") sobre um oceano abismal e tenebroso de dúvidas.


 

A Teoria e as Afirmações Kardecistas:

É oportuno olharmos em conjunto as afirmações principais que emergiram do trabalho de Kardec e colaboradores. Acho interessante considerarmos tais afirmações como uma espécie de "Teoria Kardecista a Respeito do Mundo". A maioria, talvez mesmo a totalidade de tais afirmações, é vista por boa parte dos espíritas kardecistas como constituindo-se de "revelações dos espíritos" a respeito do mundo espiritual, e do Universo de um modo mais geral:

- Existe um mundo material e um mundo espiritual.

- O mundo espiritual é pré-existente ao mundo material. É o mundo principal, e é, pelo menos até certo ponto, não dependente do mundo material.

- Tudo no Universo tem uma função.

- Todos os mundos (ou seja, planetas e objetos astronômicos similares) são habitados.

- Possuímos o corpo físico e o espírito, sendo nosso espírito a sede de nossa consciência.

- O espírito sobrevive à morte do corpo físico.

- O espírito interage com a matéria através do perispírito.

- Há apenas um tipo de "linhagem" de espíritos.

- Os espíritos são individuais e conservam sempre tal individualidade, em substância, memória, personalidade, e história de vida.

- Há a afinidade entre os espíritos semelhantes, e a repulsão entre os opostos.

- A progressão dos espíritos (em conhecimento e em moralidade) tem um "início" (onde e como, não se sabe; ou seja, não foi ainda revelado ou descoberto) e um "fim" (espíritos puros). Em sua evolução, os espíritos "passam" (encarnam) pelos reinos mineral, vegetal, animal, e "hominal".

- O espírito só progride, nunca retrograda, podendo por vezes "estacionar" durante um tempo mais ou menos longo, mas nunca infinito. O "progresso" dos espíritos se dá em conhecimento, em moralidade, e em poder anímico sobre os espíritos inferiores na hierarquia espiritual. Igualmente, em suas encarnações os espíritos habitam corpos orgânicos cada vez mais "aperfeiçoados", indo no sentido vegetais -> animais -> homem; nunca indo no sentido homem -> vegetais, ou homem -> animais.

- Há a reencarnação.

- Há a alternância entre a vida como espírito encarnado e como espírito desencarnado (ou "errante"). Isso até que o espírito atinja o grau de espírito puro, a partir do qual pode nunca mais reencarnar. Aparentemente, espíritos puros podem reencarnar se assim o desejarem, mas esse parece ser um ponto um pouco obscuro na teoria kardecista.

- As encarnações procedem também de mundos (planetas) "inferiores" (planetas com civilizações menos desenvolvidas em conhecimento e em moralidade), seguindo posteriormente para mundos "superiores".

- Há a "redenção inexorável", ou seja, nenhum espírito permanece para sempre em uma condição inferior.

- Há o livre arbítrio e a responsabilidade pelos atos praticados, implicando em necessidade de se "pagar" pelas faltas cometidas, o que por vezes inclui a reparação dos erros junto àqueles a quem se ofendeu. Isso é por vezes chamado de Lei Moral de Causa e Efeito, e posteriormente a Kardec passou-se a se utilizar o termo indiano "Karma" (ou "Carma") para se referir a este aspecto da teoria-doutrina kardecista.

- Há a preponderância do espírito sobre a matéria, e não há arrastamento irresistível para a prática do "mal" (o espírito sempre pode vencer, resistir, aos arrastamentos da matéria).

- Há uma hierarquia do bem sobre o mal.

- Há Deus. Um só! É ele o criador do Universo. Ele possui uma individualidade diferente da dos espíritos, ou seja, os espíritos provavelmente não são fragmentos de Deus, e também não são manifestações, ou emanações dele (ao contrário do que ocorre, por exemplo, com Brahman no induísmo. No induísmo, todos nós em nosso âmago mais profundo, "atma", somos o próprio Brahman). Deus é omni-potente, omni-ciente, omni-benevolente, omni-justo. O Deus kardecista é basicamente o Deus típico do que é definido como "teísmo".

- Há a mediunidade, e amplas maneiras e graus de comunicação entre os "vivos" e os "mortos".

- A mediunidade é mediada (perdoem a redundância), em grande parte pelo menos, pelo perispírito do médium (incluindo emanações do perispírito mais ou menos abundantes).


  

O Método de Kardec:

Para chegar a esse conjunto de afirmações, Kardec se utilizou de um método investigativo. Muitas vezes se pergunta como os cientistas chegaram às afirmações atuais a respeito das células, das estrelas, etc. A resposta é: seguiram um método investigativo. O chamado "método científico" costuma transitar entre a observação e a experimentação (partindo muitas vezes de alguma idéia prévia, necessidade, intenção), conduzindo então a conclusões, afirmações e teorias. Tais afirmações e teorias são a seguir testadas por novas observações e experimentações, podendo-se validar ou refutar a teoria. Uma característica que distingue a ciência da religião é uma certa abertura da ciência para alterações ou mesmo refutações de suas teorias. Contudo, é importante ressaltar que a ciência é na verdade muito mais "conservadora" (ou seja, dogmática) do que normalmente se pensa. Isso não é necessariamente um defeito (aliás, nem na ciência, nem na religião). Além dessas "regras de procedimento" (observação/experimentação -> teorização -> validação/refutação da teoria), os cientistas utilizam-se também de instrumentos para investigar a natureza (por exemplo, seus olhos), e de alguns critérios para aceitação de seus achados (como por exemplo, repetição de experimentos por vários pesquisadores independentes; realização de experimentos em condições rigorosas, onde se exclua a possibilidade de "contaminações", de fraudes, e de quaisquer outras interferências indesejadas).

Curiosamente (para desgraça dos opositores desinformados do espiritismo), é forçoso reconhecer que Kardec se utilizava de vários procedimentos e posturas marcantemente científicas em suas investigações dos fenômenos espíritas. Um exemplo seria sua abertura para idéias diferentes das suas (e conseqüente abertura para eventuais alterações de suas teorias), que aparentemente situava seu "modo" e "grau" de dogmatismo muito mais dentro do "espectro dogmático científico" do que dentro do "espectro dogmático religioso". Isso inclusive levou a uma dificuldade de classificação do espiritismo na França em meados do século XIX. Seria o espiritismo uma religião ou uma ciência? Observam-se afirmações aparentemente contraditórias quanto a isso vindo do próprio Kardec. Em uma ocasião provavelmente mais amadurecida, Kardec define melhor em que sentido ele considera o espiritismo uma religião e em que sentido ele não considera o espiritismo uma religião. Naqueles tempos, pessoas de várias religiões se dedicavam à prática e ao estudo do espiritismo junto a Kardec: católicos, protestantes, muçulmanos... Certa vez, em uma ata de reunião da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, se fez menção expressa à necessidade de que não fossem tratados temas que pudessem conflitar com dogmas religiosos, pois que havia em tal sociedade membros praticantes de vários credos religiosos! Isso é pouco conhecido mesmo de alguns bons estudiosos do espiritismo na atualidade, além de sem dúvida ser algo que parece bem estranho aos nossos olhos atualmente. E causava, na época, muito mais estranheza ainda! Um outro aspecto "científico" no procedimento de Kardec era a importância que ele dava à "replicação" de uma determinada observação por vários "pesquisadores independentes".

Vou resumir abaixo o que conheço a respeito, e como vejo, os métodos e procedimentos investigativos de Kardec, e a seguir discorrerei sobre possíveis fraquezas de tal método. Discorrerei também sobre estranhas falhas de Kardec ao aplicar tal método: ou utilizando-se dele de modo falho; ou aparentemente deixando de utilizá-lo pura e simplesmente, por motivos obscuros, mesmo em algumas situações de grande importância para o estabelecimento da "Doutrina Espírita" (kardecista).

 

1- Fontes fenomênicas observadas e estudadas por Kardec:

Psicografia indireta (através principalmente do uso da "cesta pião", e da "cesta de bico", que descreverei mais abaixo).

Psicografia direta (médium escrevendo com a própria mão a mensagem do suposto espírito).

Outras fontes (médiuns videntes, sonâmbulos, etc.).

 

2- Método experimental:

Observação.

Perguntas-questionamentos aos "espíritos".

Cuidado com os excessos de credulidade.

Cuidado com possíveis fraudes.

Respeito ao seu objeto de estudo (ou seja, aos "espíritos").

 

3- Postura epistemológico-filosófica:

Nunca partir de idéias pré-concebidas.

Uso da "indução", ou seja, prosseguir no sentido das observações para as teorizações (em determinada ocasião, Kardec se referiu a este procedimento como "dedução").

 

4- Conteúdo das observações-comunicações-revelações:

Fatos do mundo objetivo (Material ou espiritual. Por exemplo, há vida em Marte; ou, há espíritos puros).

Fatos do mundo moral (certo e errado).

Fatos do mundo filosófico (reflexões sobre os dois acima).

 

5- Critérios para aceitação das mensagens:

Concordância entre as mensagens: recebidas por vários "espíritos" diferentes; recebidas por vários médiuns diferentes; recebidas de vários locais diferentes; recebidas em várias épocas diferentes.

Fundo lógico, e não conflitante com o conhecimento cientificamente estabelecido.

Revelado por "espíritos superiores" (ou que sejam, pelo menos, competentes para se pronunciarem sobre o conteúdo da mensagem específica).

 

6- Critérios para classificação dos espíritos superiores:

Uso de linguagem digna (educada, respeitosa, benévola, não coercitiva).

Ausência de contradição.

Ausência de maldade.

Conteúdo lógico, sem falhas de lógica.

Demonstração por parte do "espírito" de possuir elevado conhecimento científico (ou de não desconhecer o conhecimento científico estabelecido), e de possuir elevada moral (ou seja, ser um mestre do bem).

 

É interessante, nesse contexto, olharmos um resumo da cronologia dos acontecimentos desde os contatos iniciais de Kardec com os fenômenos espíritas até a confecção da primeira edição do Livro dos Espíritos e, posteriormente, da segunda edição. Bem como citar algumas das pessoas mais importantes (médiuns, principalmente) envolvidas nesse período.

 

Breve Cronologia da "Codificação da Doutrina Espírita":

- Fins de 1854, Kardec ouve falar do fenômeno das "mesas girantes".

- Início de 1855, Kardec ouve pela primeira vez alguém dizer que "espíritos" dão origem a este fenômeno.

- Maio de 1855, primeiro contato de Kardec com o fenômeno das "mesas girantes".

- Agosto de 1855, Kardec inicia seu estudo sistemático das comunicações espíritas, na casa do Sr. Baudin, através principalmente da médium Srta. Caroline Baudin (com 16 anos de idade), e bem menos por sua irmã, Julie Baudin (14 anos de idade). Caroline Baudin teria primeiro se utilizado da psicografia indireta, através da "cesta pião" (corbeille-toupie), e posteriormente através da psicografia direta. Kardec teria tido também como insumos para estes estudos cinqüenta cadernos contendo comunicações mediúnicas psicografadas, recolhidos por alguns homens eruditos de suas relações e repassados para ele.

- Abril de 1857, após dezoito (18) meses de trabalhos, é publicada a primeira edição do Livro dos Espíritos. Fruto principalmente da mediunidade de Caroline Baudin, com extensa revisão realizada principalmente pela médium Srta. Japhet (que era "sonâmbula", e utilizava-se também da psicografia indireta através da "cesta de bico" - corbeille à bec), e com consultas também a mais de dez outros médiuns diversos.

- Janeiro de 1858, Kardec lança a Revista Espírita (Revue Spirite).

- Março de 1860, Kardec lança a segunda edição do Livro dos Espíritos, com algumas modificações curiosas com relação à primeira edição.

 

Comentários Importantes:

Em meados do século XIX, algo de realmente estranho parece ter acontecido pelo menos em alguns locais do mundo, notadamente em alguns países da Europa, Estados Unidos, e possivelmente em mais alguns outros países em diversos continentes. É o período do "nascimento" do "Moderno Espiritualismo", o período do fenômeno mundial das "Mesas Girantes", que freqüentemente é relatado como tendo seu momento de início mais marcante com os acontecimentos envolvendo as pequenas irmãs Fox nos Estados Unidos (1848). Esses eventos históricos são descritos em boa profundidade e de modo bem interessante tanto na extensa pesquisa biográfica sobre Kardec realizada por Zêus Wantuil e Francisco Thiesen (o volume 1 que possuo tem o nome Allan Kardec - Meticulosa Pesquisa Bibliográfica. FEB, 1979; e os volumes 2 e 3 têm o nome Allan Kardec - Pesquisa Bibliográfica e Ensaios de Interpretação. FEB, 1980), como também no livro As Mesas Girantes e o Espiritismo, de Zêus Wantuil (FEB. 3a edição, 1994). Parece muito difícil que tais fenômenos possam ser explicados em sua totalidade como fruto de histeria coletiva mundial, ou fraude, ou outras explicações "naturalistas" (ou seja, explicações que não conflitem com os conhecimentos científicos estabelecidos, ou talvez melhor dizendo: "com as interpretações materialistas" de tais conhecimentos científicos). A mim, parece que de fato ocorreu algo de singular no mundo então, e algo bem possivelmente de uma natureza "sobrenatural" (ou usando termos alternativos: paranormal, anômala, espírita, etc.). Acho, contudo, difícil que se possa chegar a uma posição científica minimamente segura sobre o que mais provavelmente ocorreu nesse período.

Kardec frisa (estranhamente...) por diversas vezes que ninguém imaginou a explicação "espíritos" para tais fenômenos, e que foi o próprio fenômeno que se revelou como tal. Uma leitura atenta dos livros de Zêus Wantuil (As Mesas Girantes e o Espiritismo) e de Wantuil e Thiesen (Allan Kardec - Meticulosa Pesquisa Bibliográfica vols. 1, 2, e 3) parece indicar que Kardec estava bastante errado nesse ponto, ou que pelo menos ele exagerou esse ponto consideravelmente. Já na introdução do Livro dos Espíritos, primeira edição de abril de 1857, Kardec se expressa nesses termos (repetidos na introdução da segunda edição, a "definitiva", de março de 1860):

"O primeiro fenômeno observado (Na França, a partir de primeiro de Abril de 1853) foi o de vários objetos em movimento; ficou designado em definitivo pelo nome popular de Mesas Rolantes ou Dança das Mesas. Este fenômeno, que parece ter sido observado primeiro na América (Em Rochester, desde Agosto de 1848.) ou, antes, que foi renovado nesse país — visto como a História prova que ele remonta à mais alta Antigüidade — se produziu acompanhado, em circunstâncias estranhas, de ruídos insólitos, tais como percussões sem ostensiva causa. Do Novo Hemisfério o fato se propagou rapidamente na Europa e n' outras partes do Mundo. Sublevou a princípio grande onda de incredulidade, mas a superabundância de provas em pouco tempo não permitiu duvidar mais da realidade." (retirado do livro O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec, 1857. Tradução de Canuto Abreu, Companhia Editora Ismael. São Paulo. 1957; página 4 - grifos meus)

"Se os fenômenos de que nos ocupamos se houvessem cingido ao movimento de objetos, teriam ficado, como o dissemos há pouco, em pleno domínio das Ciências Físicas. Mas com eles não aconteceu assim. Estavam destinados a nos pôr na pista de fatos duma natureza estranha. Percebeu-se de repente, não sabemos por qual iniciativa, que aquela impulsão dada aos objetos não era somente produto de uma força mecânica inconsciente mas, ao contrário, havia nesse movimento a intervenção de uma causa inteligente. Esta vereda uma vez aberta, descobriu-se um campo de observações totalmente novo; ficou o véu levantado de sobre muitos mistérios. Há ou não uma força inteligente? Tal é a questão. Se esta força existe, que é ela? Qual será a sua natureza? sua origem? Está acima da Humanidade? Tais são as consequentes perguntas que defluem da questão." (O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec, 1857; página 7 - grifos meus)

Kardec mesmo reconhece (e afirma diversas vezes em suas obras) que o "fenômeno" "remonta à mais alta Antigüidade". Parece, em vista disso, muito difícil estabelecer-se com uma segurança mínima se foram as pessoas vivas que imaginaram haver em tais fenômenos causas ligadas a "espíritos de pessoas mortas", ou se, ao invés disto, foram os próprios fenômenos que "disseram isso" de alguma maneira. Isso é ainda reforçado pelo seguinte trecho da fala de Kardec acima: "Percebeu-se de repente, não sabemos por qual iniciativa". Ora, vejamos. Kardec (e muitos outros historiadores de tais fenômenos) atribuem seu início, ou reinício mais marcante, como tendo ocorrido nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, o fenômeno tem seu início reconhecidamente entre as irmãs Fox (então crianças com prováveis 9 e 12 anos). Wantuil e Thiesen (Allan Kardec - Pesquisa Bibliográfica e Ensaios de Interpretação, vol. 2, pág. 50-53) situam a data inicial das pancadas na casa da família Fox em 28 de março de 1848. Logo após, a filha mais nova (Katherine, com prováveis 9 anos) resolve fazer uma experiência para ver se o "fenômeno" repetiria o número de batidas que ela realizasse. Ela teria dito "Vamos, Old Splitfoot, faça o que eu faço.". Daí, suas batidas foram repetidas em igual número pelo "fenômeno"; e não muito depois (já em 31 de março de 1848, ou seja, 3 dias após o início dos estranhos acontecimentos) o "fenômeno" havia contado toda sua história, e se identificado como o espírito de um vendedor ambulante que havia sido assassinado ali alguns anos antes, etc.

Observem que a menina, segundo os relatos, teria utilizado o termo "Old Splitfoot". "Velho Pé-rachado". Pé-rachado é o demônio, numa alusão aos pés de cabra, com os quais os demônios são freqüentemente retratados. Então, de um lado temos Kardec, que assevera que "ninguém imaginou a explicação espíritos", e de outro lado temos uma menina de 9 anos que, já de saída, imaginou algo de sobrenatural e inteligente no fenômeno. Por quê então Kardec insiste e enfatiza tanto esse ponto de que ninguém teria pré-concebido a explicação "espíritos" para o fenômeno das mesas girantes, das pancadas, e etc.? Penso eu que, possivelmente, devido a dois motivos.

Primeiro, os fenômenos do eletromagnetismo estavam nesta época passando a ser muito mais bem conhecidos, o que deve ter levado muitos a acharem que esses fenômenos bizarros das "mesas girantes" (assumindo obviamente que não fossem fraude ou histeria coletiva) pudessem talvez ter uma explicação dentro dos novos conhecimentos das ciências físicas. Tivessem eles ocorrido na Idade Média, ninguém teria a menor dúvida em atribuir tais fenômenos exclusivamente a interferências demoníacas!

O segundo motivo, penso eu, seria talvez uma intenção de Kardec de dar aos seus estudos uma maior respeitabilidade ante os olhos dos cientistas, já que, creio, havia nessa época uma valorização do que é conhecido atualmente como o "método indutivista", segundo o qual o pesquisador não deve partir em seus estudos de idéias pré-concebidas, e sim observar única e simplesmente os fenômenos (e realizar experiências com eles também), e a partir daí sim chegar a conclusões, e teorizações.

Um outro ponto que gostaria de comentar é a informação segundo a qual Kardec teria recebido de alguns ilustres homens franceses de suas relações cinqüenta cadernos contendo comunicações mediúnicas psicografadas, que teriam sido utilizadas como insumos na criação do Livro dos Espíritos. Tanto quanto pude identificar, somente Henri Sausse menciona isso, em sua Biografia de Allan Kardec, apresentada aos espíritas da cidade de Lion, na França, em 1896 (essa biografia foi incluída nas edições da FEB do livro O Que é O Espiritismo). Wantuil e Thiesen contestam dois pontos importantes comentados nesta biografia. Primeiro, o fato de Kardec ter sido "doutor em medicina" (Sausse chega a dizer que Kardec havia "defendido brilhantemente sua tese"). Segundo, a afirmação de que "Muitíssimas vezes, quando Pestalozzi era chamado pelos governos, um pouco de todos os lados, para fundar institutos semelhantes ao de Yverdun, confiava a Denizard Rivail (nome verdadeiro de Allan Kardec) o encargo de o substituir na direção da sua escola.". Wantuil e Thiesen acham muito pouco provável que isso tenha ocorrido em qualquer ocasião. Se Sausse exagerou no que tange aos cinqüenta cadernos ou não, é difícil dizer. Sausse se refere a tais cadernos nesses termos:

"...(os) Srs. Carlotti, René Taillandier, membro da Academia das Ciências, Tiedeman-Manthèse, Sardou, pai e filho, e Diddier, editor, que acompanhavam havia cinco anos o estudo desses fenômenos e tinham reunido cinqüenta cadernos de comunicações diversas, que não conseguiam pôr em ordem. Conhecendo as vastas e raras aptidões de síntese do Sr. Rivail, esses senhores lhe enviaram os cadernos, pedindo-lhe que deles tomasse conhecimento e os pusesse em termos -, os arranjasse. Este trabalho era árduo e exigia muito tempo, em virtude das lacunas e obscuridades dessas comunicações; e o sábio enciclopedista recusava-se a essa tarefa enfadonha e absorvente, em razão de outros trabalhos."

Sem dúvida, não se trata de nada de extraordinário, e é bem possível que tais cadernos de fato tenham existido e desempenhado papel importante na elaboração da primeira edição do Livro dos Espíritos. Um dado adicional curioso é comentado por Wantuil e Thiesen (Allan Kardec - Pesquisa Bibliográfica e Ensaios de Interpretação, vol. 2, pág. 71). Eles afirmam que o conteúdo de tais cadernos teria sido obtido principalmente através do trabalho da sonâmbula e médium Srta. Japhet. Se assim de fato foi, então os cinqüenta cadernos, obtidos pela Srta. Japhet, foram usados como insumos para os trabalhos junto com a Srta. Caroline Baudin, tendo o resultado de tais trabalhos sido posteriormente revisto pela Srta. Japhet, e daí levando à elaboração da primeira edição do Livro dos Espíritos. Ou seja: Japhet -> Baudin -> Japhet-> Livro dos Espíritos. Um percurso um tanto quanto circular e restrito.

A informação de que (além dos trabalhos junto à Srta. Caroline Baudin e das revisões junto à Srta. Japhet) "Kardec teria consultado mais de dez outros médiuns" durante a elaboração da primeira edição do Livro dos Espíritos aparece apenas (que eu saiba) no livro Obras Póstumas. Que eu tenha conseguido identificar, durante sua vida, a principal informação que Kardec forneceu sobre o modo como foi feito o Livro dos Espíritos consta do primeiro fascículo da Revista Espírita, de janeiro de 1858, página 36:

"Freqüentemente, se nos dirigem perguntas sobre a maneira pela qual obtivemos as comunicações que são objeto de O Livro dos Espíritos. Resumimos, aqui, tanto mais voluntariamente, as respostas que nos fizeram, a esse respeito, pois isso nos dará ocasião de cumprir um dever de gratidão, para com as pessoas que quiseram nos prestar seu concurso."

"Como explicamos, as comunicações por pancadas, dito de outro modo, pela tiptologia, são muito lentas e muito incompletas, para um trabalho de longo fôlego, também não empregamos, jamais, esse meio; tudo foi obtido pela escrita e por intermédio de vários médiuns psicógrafos. Nós mesmos preparamos as perguntas e coordenamos o conjunto da obra; as respostas são, textualmente, as que nos foram dadas pêlos Espíritos; a maioria, foi escrita sob nossos olhos, algumas foram tomadas de comunicações que nos foram dirigidas por correspondentes, ou que recolhemos, por toda parte onde estivemos, para estudá-las: os Espíritos parecem, para esse efeito, multiplicar, aos nossos olhos, os sujeitos de observação."

"Os primeiros médiuns que concorreram para o nosso trabalho, foram a senhorita B***, cuja complacência nunca nos faltou; o livro foi escrito, quase por inteiro, por seu intermédio e na presença de um numeroso auditório, que assistia às sessões, e nelas tomavam o mais vivo interesse. Mais tarde, os Espíritos prescreveram-lhe a revisão completa em conversas particulares, para fazerem todas as adições e correções que julgaram necessárias. Essa parte essencial do trabalho foi feita com o concurso da senhorita Japhet (1), que se prestou, com a maior complacência e o mais completo desinteresse, a todas as exigências dos Espíritos, porque eram eles que determinavam os dias e as horas de suas lições. O desinteresse não seria, aqui, um mérito particular, uma vez que os Espíritos reprovam todo o tráfico que se possa fazer com sua presença; a senhorita Japhet, que é, igualmente, sonâmbula muito notável, tinha seu tempo utilmente empregado; mas compreendeu que era, igualmente, dele fazer um emprego aproveitável, consagrando-o à propagação da Doutrina. Quanto a nós, declaramos, desde o princípio, e nos apraz confirmar aqui, que jamais entendemos fazer, de O Livro dos Espíritos, objeto de uma especulação, devendo os produtos serem aplicados em coisas de utilidade geral; é, por isso, que seremos, sempre, reconhecidos para com aqueles que se associaram, de coração, e por amor ao bem, à obra à qual nos consagramos."

Allan Kardec

(1) RuaTiquetonne, 14.

 

Kardec fala claramente de "vários médiuns psicógrafos". Mas ele também fala claramente que "o livro foi escrito, quase por inteiro, por seu intermédio" (da Srta. Caroline Baudin). O contato e a consulta a "mais de dez médiuns" (interpreto isso como de 11 a 20 médiuns, senão teria sido provavelmente dito "mais de vinte médiuns", ou "mais de trinta médiuns", etc.), conforme exposto em Obras Póstumas, parece compatível com o estilo e o modo de proceder de Kardec. Contudo, a mim pelo menos, parece claro que o trabalho e as comunicações (ou revelações) centraram-se fortemente no binômio Baudin-Japhet.

Caroline Baudin se utilizava da psicografia indireta através da "cesta pião", e posteriormente passou a se utilizar da psicografia direta. Conforme dito por Kardec na edição de novembro de 1858 da Revista Espírita, página 316:

"O médium que lhe servia de intérprete (ao espírito Soulié) era a senhorita Caroline B..., uma das filhas do senhor da casa, médium do gênero exclusivamente passivo, não tendo jamais a menor consciência daquilo que escrevia, e podendo rir e conversar à direita ou à esquerda, o que fazia de bom grado, enquanto a sua mão caminhava. O meio mecânico empregado foi, durante muito tempo, a cesta pião, descrita em nossa instrução prática. Mais tarde, o médium serviu-se da psicografia direta."

Com relação à Srta. Japhet, Henri Sausse diz em sua Biografia de Allan Kardec que ela se utilizava da "cesta de bico". O mesmo é dito em Obras Póstumas, página 270 na edição da FEB:

"No ano seguinte, em 1856, freqüentei ao mesmo tempo as reuniões espíritas que se celebravam à rua Tiquetone, em casa do Sr. Roustan e Srta. Japhet, sonâmbula. Eram sérias essas reuniões e se realizavam com ordem. As comunicações eram transmitidas por intermédio da Srta. Japhet, médium, com auxílio da cesta de bico."

É interessante observar as descrições a respeito da "cesta-pião" e da "cesta de bico", constantes no Livro dos Médiuns, páginas 199 e 200, questões 153, 154, e 155.

Cesta Pião:

"153. Já dissemos que uma pessoa, dotada de aptidão especial, pode imprimir movimento de rotação a uma mesa, ou a outro objeto qualquer. Tomemos, em vez de uma mesa, uma cestinha de quinze a vinte centímetros de diâmetro (de madeira ou de vime, a substância pouco importa). Se fizermos passar pelo fundo dessa cesta um lápis e o prendermos bem, com a ponta de fora e para baixo; se mantivermos o aparelho assim formado em equilíbrio sobre a ponta do lápis, apoiado este sobre uma folha de papel, e apoiarmos os dedos nas bordas da cesta, ela se porá em movimento; mas, em vez de girar, fará que o lápis percorra, em diversos sentidos, o papel, traçando ou riscos sem significação, ou letras. Se se evocar um Espírito que queira comunicar-se, ele responderá não mais por meio de pancadas, como na tiptologia, porém, escrevendo palavras. O movimento da cesta já não é automático, como no caso das mesas girantes; torna-se inteligente. Com esse dispositivo, o lápis, ao chegar à extremidade da linha, não volta ao ponto de partida para começar outra; continua a mover-se circularmente, de sorte que a linha escrita forma uma espiral, tornando necessário voltear muitas vezes o papel para se ler o que está grafado. Nem sempre é muito legível a escrita assim feita, por não ficarem separadas as palavras. Entretanto, o médium, por uma espécie de intuição, facilmente a decifra. Por economia, o papel e o lápis comum podem ser substituídos por uma lousa com o respectivo lápis. Designaremos este gênero de cesta pelo nome de cesta-pião. As vezes, em lugar da cesta, emprega-se um papelão muito semelhante às caixas de pastilhas, formando-lhe o lápis o eixo, como no brinquedo chamado carrapeta." (grifos meus)

Cesta de Bico:

"154. Muitos outros dispositivos se têm imaginado para a obtenção do mesmo resultado. O mais cômodo é o a que chamaremos cesta de bico e que consiste em adaptar-se à cesta uma haste inclinada, de madeira, prolongando-se dez a quinze centímetros para o lado de fora, na posição do mastro de gurupés, numa embarcação. Por um buraco aberto na extremidade dessa haste, ou bico, passa-se um lápis bastante comprido para que sua ponta assente no papel. Pondo o médium os dedos na borda da cesta, o aparelho todo se agita e o lápis escreve, como no caso anterior, com a diferença, porém, de que, em geral, a escrita é mais legível, com as palavras separadas e as linhas sucedendo-se paralelas, como na escrita comum, por poder o médium levar facilmente o lápis de uma linha a outra. Obtêm-se assim dissertações de muitas páginas, tão rapidamente como se se escrevesse com a mão."

"155. Ainda por outros sinais inequívocos se manifesta amiúde a inteligência que atua. Chegando ao fim da página, o lápis faz espontaneamente um movimento para virar o papel. Se ele se quer reportar a uma passagem já escrita, na mesma página, ou noutra, procura-a com a ponta do lápis, como qualquer pessoa o faria com a ponta do dedo, e sublinha-a. Se, enfim, o Espírito quer dirigir-se a alguém, a extremidade da haste de madeira se dirige para esse alguém. Por abreviar, exprimem-se freqüentemente as palavras sim e não, pelos sinais de afirmação e negação que fazemos com a cabeça. Se o Espírito quer exprimir cólera, ou impaciência, bate repetidas pancadas com a ponta do lápis e não raro a quebra." (grifos meus)

 

Pelas descrições acima, parece que a "cesta-pião" é bem menos passível de sofrer interferência intencional (consciente ou inconsciente) do médium. Caroline Baudin se utilizava de tal mecanismo. Posteriormente, porém, ela passou a se utilizar justamente do mecanismo psicográfico mais suscetível da influência intencional (consciente ou inconsciente) do médium: a psicografia direta.

Aparentemente, a "cesta de bico" é bem mais suscetível de sofrer interferência intencional (consciente ou inconsciente) do médium do que a "cesta-pião". A Srta. Japhet se utilizava, no exercício de sua mediunidade, da "cesta de bico", e, sendo também sonâmbula, nada impede que as revisões que Kardec efetuou junto a ela se dessem, também, durante os momentos em que ela estivesse em estado de sonambulismo, talvez mesmo manifestando verbalmente o que os "espíritos" achavam de tal ou tal item colhido junto à Srta. Baudin. O sonambulismo é, possivelmente, tão passível de sofrer influência intencional (consciente ou inconsciente) do médium quanto a psicografia direta.

O resultado final do trabalho realizado por Kardec nas condições acima descritas (em virtudes e fraquezas) se reflete no frontispício da primeira edição do Livro dos Espíritos:

-

O Livro dos Espíritos

contendo

Os Princípios da Doutrina Espírita

sobre a natureza dos espíritos, suas manifestações e suas relações com os homens; as leis morais, a vida presente, a vida futura, e o porvir da humanidade;

escrito conforme ditado e publicado pela ordem de espíritos superiores

Por Allan Kardec.


 

Pontos Fracos na Metodologia Usada Por Kardec:

Na seção acima, entitulada "O Método de Kardec", arrolei seis itens que me parecem fundamentais para se entender os procedimentos, os achados, e as teorizações de Kardec. Podemos considerá-los como os "Materiais e Métodos" de Kardec.

O item 1 fala dos fenômenos estudados. Como eu disse mais acima, a psicografia direta (médium escrevendo diretamente com a própria mão) é, em tese, altamente sujeita a interferências do médium, consciente ou inconscientemente.

Mesmo na fase inicial das "pesquisas" de Kardec, com Caroline Baudin, a médium acabou utilizando-se da psicografia direta, apesar de não sabermos o quanto do Livro dos Espíritos foi obtido desta forma. O método anterior utilizado por Caroline Baudin, "cesta-pião", apesar de ser descrito por Kardec como imune da interferência do médium, possuía, contudo, um ponto especialmente fraco a meu ver, pelo que se pode compreender de sua descrição. Kardec diz: "Nem sempre é muito legível a escrita assim feita, por não ficarem separadas as palavras. Entretanto, o médium, por uma espécie de intuição, facilmente a decifra.". Com relação aos trabalhos com Caroline Baudin, não sabemos o quanto do trabalho foi obtido por psicografia direta, e não sabemos também, do que foi obtido através da "cesta-pião", o quanto constituía-se de textos cuja identificação podia ser feita apenas por ela.

Já com relação à Srta. Japhet, a utilização de um mecanismo aparentemente mais suscetível de interferência do médium ("cesta de bico") somada à possibilidade de auxílio através do sonambulismo, são fatores que "enfraquecem" o fenômeno objeto de estudo.

Gostaria de deixar claro que eu não estou dizendo que através da psicografia direta não é possível se obter comunicações de "Espíritos Superiores". Do mesmo modo, não estou dizendo que um lápis que flutue sozinho e escreva mensagens espirituais diante dos olhos dos mais bem preparados céticos do mundo atual seja, necessariamente, um infalível "Arauto dos Deuses". O que estou, neste momento e neste ponto específico, tentando identificar é o quanto de possivelmente "extraordinário" existia nas fontes fenomênicas que Kardec estudou e das quais ele se utilizou para chegar às "revelações" do Livro dos Espíritos. Dos relatos que pude ter contato, e do que parece ter sobrevivido dos tempos de Kardec até os nossos dias, não parece poder ser dito de modo seguro que Kardec dirigiu perguntas que foram respondidas através de algum meio claramente "extraordinário" ou "sobrenatural" (ou "paranormal", "anômalo", etc.).

Além disso, por mais que de fato Kardec possuísse cuidado com relação a fraudes, muitas vezes só pessoas com vasta experiência em técnicas de ilusionismo conseguem detectar possíveis pontos fracos em mecanismos como, por exemplo, os utilizados pelas médiuns em questão ("cesta-pião" e "cesta de bico"). E o mesmo pode ser dito com relação ao uso específico destes instrumentos, feito por estas duas médiuns específicas, nas várias sessões específicas acompanhadas por Kardec.

No item 2, cito o que conheço serem os "Métodos Experimentais" de Kardec. Com relação a este item, considero o fato de Kardec não possuir uma "vastíssima experiência em técnicas ilusionistas" como um ponto fraco em potencial. Mas um ponto especialmente favorável neste item é o "respeito que Kardec possuía pelo seu objeto de estudo", ou seja, pelos espíritos: Se você não for capaz de detectar fraudes ilusionistas, você pode obter falsas mensagens espíritas. Mas se você não possuir um verdadeiro respeito pelos espíritos (independente deles existirem ou não), dificilmente obterá mensagens espíritas verdadeiras (na hipótese dos espíritos de fato existirem).

No item 3 ("Postura epistemológico-filosófica"), considero altamente criticáveis as afirmações freqüentes de Kardec de que ele "não partia de idéias pré-concebidas" e de que "ninguém pensou na hipótese 'espíritos'; foi o fenômeno que se nomeou como tal". Tais afirmações parecem ter como objetivo principal, senão exclusivo, construir uma respeitabilidade para as proposições de Kardec (ou para as proposições dos "espíritos" que foram através dele divulgados) perante a visão científica da época; e são, a meu ver, afirmações na verdade com uma base muito fraca.

O item 4, ou seja, o "Conteúdo das observações-comunicações-revelações", está em estreita dependência dos itens 5 e 6. Na verdade, são estes dois últimos itens que formam a base de "respeitabilidade científica potencial" da "Teoria Espírita Kardecista" (conforme pesquisada por Kardec). Todos os pontos constantes destes itens (ou seja, dos itens 5 e 6) estão destacados em vermelho. Isso porque, na verdade, eu considero todos eles gravemente falhos. Analisarei primeiro o item 6, e por fim o item 5.

Com relação ao item 6 ("Critérios para classificação dos espíritos superiores"), Kardec parece mesmo adotar uma postura ingênua e/ou arrogante. Mesmo na primeira edição do Livro dos Espíritos, Kardec já afirmava (O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec, página 12):

"A distinção entre Espíritos bons e impuros é extremamente fácil: A linguagem dos Espíritos Superiores é constantemente digna, nobre, impregnada da mais alta moralidade, imune de qualquer paixão inferior; seus conselhos transpiram a mais pura sabedoria e têm sempre por escopo nossa melhoria e o bem da Humanidade. A linguagem dos Espíritos inferiores, ao contrário, é inconseqüente, quase sempre trivial e até grosseira; se dizem por vezes coisas boas e verdadeiras, dizem-nas mais freqüentemente falsas e absurdas por malícia ou por ignorância; tiram todo proveito da credulidade e se divertem à custa dos que os interrogam, ora insuflando-lhes a vaidade, ora embalando-lhes os desejos com falsas esperanças. Em suma, as comunicações sérias, na verdadeira acepção da frase, só serão transmitidas nos centros sérios, naqueles em que os companheiros se acharem unidos por íntima comunhão de pensamentos visando ao Bem." (grifos meus)

A mim, parece altamente subjetivo e perigosamente ingênuo (ou mesmo arrogante) dizer-se que "A distinção entre Espíritos bons e impuros é extremamente fácil.". Não acredito que haja muitas pessoas no mundo, se é que há alguma, que consiga distinguir o "homem bom" do "homem mal" com essa facilidade apregoada por Kardec. De modo similar ao dito acima, ao apresentar a "Escala Espírita" (escala hierárquica dos espíritos), Kardec faz o seguinte comentário (O Livro dos Espíritos, página 89, parágrafo logo antes da pergunta 101):

"Com o auxílio desse quadro, fácil será determinar-se a ordem, assim como o grau de superioridade ou de inferioridade dos que possam entrar em relações conosco e, por conseguinte, o grau de confiança ou de estima que mereçam. É, de certo modo, a chave da ciência espírita, porquanto só ele pode explicar as anomalias que as comunicações apresentam, esclarecendo-nos acerca das desigualdades intelectuais e morais dos Espíritos."

Se formos, por exemplo, condenar as "contradições" como sinais reveladores de inferioridade, correríamos o risco de, por volta do ano de 1880, considerar como originária de um espírito inferior uma mensagem que dissesse que os fótons são ao mesmo tempo ondas e partículas. Ou seja, aquilo que pode parecer uma contradição pode na verdade não ser exatamente isso, e sim parecer como tal aos nossos olhos devido a falhas de nossos conhecimentos. O mesmo se dá com relação à exigência de que o espírito conheça a ciência (na verdade, querendo dizer menos que ele "revele fatos científicos", e sim que ele "não demonstre desconhecer a ciência estabelecida") e a moral. A exigência de "coerência lógica" me parece um critério relativamente europocêntrico. Ou seja, pelo menos em um grau minimamente significativo, sou da opinião de que diferentes povos possuem "lógicas" diferentes e modos diferentes de olhar e entender o mundo. Isso é exposto de modo interessante no livro de Fritjof Capra O Tao da Física, onde ele mostra que reflexões e procedimentos aparentemente inúteis (e "ilógicos") de alguns povos orientais possuem na verdade uma coerência e uma conseqüência profundas e impressionantes.

Kardec comenta ainda um importante quesito: "Ausência de maldade". Por mais objetivo que esse quesito possa parecer, o fato é que há grandes diferenças entre o que pessoas diferentes consideram como maldade ou não. Kardec diz (O Livro dos Espíritos, página 90, pergunta 101): "Todo espírito que, em suas comunicações, trai um mau pensamento, pode ser classificado na terceira ordem." (ou seja, Espíritos imperfeitos. A terceira ordem é a mais baixa das três.). Eu, por exemplo, tomando como orientação esta frase, incluiria sem pestanejar no grupo dos espíritos da terceira ordem "São Luís", que era, nos tempos de Kardec, nada menos que o "Espírito Protetor" da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas!

O item 5, "Critérios para aceitação das mensagens", possui uma certa redundância com o item 6, em especial com relação à exigência de que revelações venham por "Espíritos Superiores", e à exigência de fundo lógico nas mensagens e não conflitante com o conhecimento cientificamente estabelecido. O ponto aparentemente mais objetivo seria "Concordância entre as mensagens: recebidas por vários espíritos diferentes; recebidas por vários médiuns diferentes; recebidas de vários locais diferentes; recebidas em várias épocas diferentes".

Esse item (ou melhor, sub-item) da "concordância entre vários espíritos, entre vários médiuns, em diversos tempos e lugares" é de fato bem interessante. Ele, contudo, possui alguns pontos fracos. Talvez o ponto mais fraco seja a semelhança de pontos de vista sobre determinadas questões entre diversos povos, em diversos locais, ao longo de diversas épocas. Por exemplo, ao examinarmos a questão de se Deus é uma entidade "independente" dos espíritos (conforme o "teísmo" ocidental clássico), ou se, ao invés, os espíritos são emanações não rompidas ("tentáculos") da Divindade (conforme o brahmanismo), pouco vale obter-se comunicações de 500 médiuns da Itália, Inglaterra, Espanha, Brasil, Austrália e Etiópia. Mas valeria bastante confrontar comunicações de 20 médiuns da Índia, Nepal, Japão, Inglaterra, Alemanha e França. Há um segundo ponto fraco nesse sub-item. Muitas das cartas dirigidas a Kardec de centros espíritas de outros países e de outros continentes provinham de pessoas que haviam tido contato com o Livro dos Espíritos. "Centros Espíritas", ou instituições similares, que, por exemplo, não endossassem as idéias da hierarquia do bem e da supremacia do bem sobre o mal (como creio que ocorre com o Candomblé mais primitivo, que ao que sei parece possuir uma postura mais "amoral") talvez nem se interessassem em enviar qualquer comunicado a Kardec, mesmo se alguns de seus membros tivessem lido o Livro dos Espíritos.

Há um aspecto, porém, ainda mais problemático neste sub-item da "concordância". Não se trata exatamente de uma falha deste sub-item em si, mas sim uma contrapartida que surge do uso dele. Usar o critério da "concordância" exige, como contrapartida, uma demonstração de que a "concordância" de fato ocorreu. E nesse ponto em particular, apesar de Kardec ter de fato fornecido uma demonstração muitíssimo maior e mais sólida do que possivelmente qualquer religião de seu tempo (e talvez mesmo maior e mais sólida do que algumas "ciências" de seu tempo ou do nosso), a "demonstração da concordância" fornecida por Kardec situou-se muitíssimo abaixo do requerido para que se possa considerar os itens da "Teoria Espírita Kardecista" como fatos, ou mesmo para que se possa considerá-los como uma teoria científica estabelecida com um mínimo de solidez.

 

Nota sobre a "maldade" dos espíritos guias de Kardec:

Kardec afirma que "Todo espírito que, em suas comunicações, trai um mau pensamento, pode ser classificado na terceira ordem.". Julgar o que é o "bem" e o que é o "mal" é uma tarefa muito difícil, bastante subjetiva, e também fortemente sujeita aos nossos condicionamentos culturais e históricos. Por exemplo, o espírito "São Luís" (que era tido mais ou menos como um "presidente espiritual" da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas ao tempo de Kardec) em algumas ocasiões emitiu opiniões que para mim parecem claramente oriundas não de um "Espírito Superior", como ele era considerado por Kardec e demais membros da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, mas na verdade procedentes de um espírito da terceira e mais inferior das ordens espíritas: a ordem dos espíritos imperfeitos.

No livro O Céu e o Inferno, de Allan Kardec, existem supostas descrições das condições de vida pós-morte de diversos tipos de espíritos, narradas inclusive pelos "próprios espíritos" que estariam experimentando tais vivências: pessoas que foram boas durante a vida; pessoas que foram mais ou menos neutras; e pessoas que foram más. Há também descrições das condições pós-morte de acordo com o tipo de morte, e especialmente interessante é o relato dos suicidas. Todos temos um horror quase irracional pelo suicídio. Inúmeras religiões condenam tal ato, e há mesmo legislações variadas em alguns países posicionando-se fortemente contra o suicídio. Kardec e o kardecismo, de um modo natural, se posicionam ferozmente contra o suicídio também. Mas há, nesta seção do livro O Céu e o Inferno, alguns pontos particularmente curiosos.

Na página 298, há a descrição do seguinte caso:

"No começo da guerra da Itália, em l859, um negociante de Paris, pai de família, gozando de estima geral por parte dos seus vizinhos, tinha um filho que fora sorteado para o serviço militar. Impossibilitado de o eximir de tal serviço, ocorreu-lhe a idéia de suicidar-se a fim de o isentar do mesmo, como filho único de mulher viúva. Um ano mais tarde, foi evocado na Sociedade de Paris a pedido de pessoa que o conhecera, desejosa de certificar-se da sua sorte no mundo espiritual."

São Luís afirmou que "Este espírito sofre justamente, pois lhe faltou a confiança em Deus, falta que é sempre punível.". Tanto São Luís como Kardec comentam o fato atenuante da intenção do Pai de livrar o filho da possibilidade de morrer na guerra. Kardec ainda acrescenta os seguintes comentários na página 300:

"À primeira vista, como ato de abnegação, este suicídio poder-se-ia considerar desculpável. Efetivamente assim é, mas não de modo absoluto. A esse homem faltou a confiança em Deus, como disse o Espírito S. Luís. A sua ação talvez impediu a realização dos destinos do filho; ao demais, ele não tinha a certeza de que aquele sucumbiria na guerra e a carreira militar talvez lhe fornecesse ocasião de adiantar-se. A intenção era boa, e isso lhe atenua o mal provocado e merece indulgência; mas o mal é sempre o mal, e se o não fora, poder-se-ia, escudado no raciocínio, desculpar todos os crimes e até matar a pretexto de prestar serviços."

"(...)O suicídio mais severamente punido é o resultante do desespero que visa a redenção das misérias terrenas, misérias que são ao mesmo tempo expiações e provações. Furtar-se a elas é recuar ante a tarefa aceita e, às vezes, ante a missão que se devera cumprir."

Curioso que ninguém viu o mérito de se impedir que o filho cometesse homicídios e diversos outros tipos de destruições na guerra. Kardec enxerga a possibilidade de que a "a carreira militar talvez lhe fornecesse ocasião de adiantar-se.", mas não assinala que isso se daria às custas possivelmente da morte de outros. E ele incorre em inacreditável incoerência ao dizer "mas o mal é sempre o mal, e se o não fora, poder-se-ia, escudado no raciocínio, desculpar todos os crimes e até matar a pretexto de prestar serviços.". Ele considera o suicídio do pai um mal que não deixou de ser mal apesar das nobres intenções; por um lado, "condena o ato de matar a pretexto de prestar serviços"; e acaba, em franca contradição, apoiando o ato de matar a pretexto de prestar serviços (na guerra). De fato, para mim, neste ponto (e de acordo com os meus "condicionamentos culturais e históricos"), São Luís manifestou uma opinião má. Mas Kardec foi ainda pior.

Em outro trecho, entitulado "Luís e a Prespontadeira de Botinas" (página 309), a qualidade do julgamento moral de "São Luís" e de Kardec deixa ainda muito mais a desejar. Nesse trecho, uma jovem chamada Victorine R. namorava há oito meses um sapateiro de nome Luís, e estava para com ele se casar (já eram noivos, tendo mesmo corrido os proclamas para o casamento). O rapaz (ou homem) almoçava e jantava na casa dela quase sempre, e após uma briga por "motivos fúteis" (segundo relato do jornal), Luís saiu da mesa (do almoço na casa da noiva) dizendo que não ia mais voltar (e nem se casar, obviamente). No dia seguinte, se arrependeu, voltou, e foi rejeitado. Insistiu por alguns dias, e após irredutível recusa de sua ex-noiva em reatar a relação (e recusa também de abrir a porta para ele), Luís grita lá de fora: "Adeus, pois, cruel! adeus para sempre. Trata de procurar um marido que te estime tanto como eu.". Enfiou, então, uma faca no coração, morreu, e a ex-noiva e família só perceberam o ocorrido uns quinze minutos depois.

Kardec e colaboradores, então, evocaram "São Luís" e depois o espírito suicida para "investigar" o caso. O "espírito" do suicida afirmou que a moça não era má. Diante da pergunta de se o amor dele por ela era sincero, o espírito respondeu: "Paixão somente, creia; pois se o amor fosse puro eu me teria poupado de lhe causar um desgosto.". "São Luís", contudo, fez algumas afirmações curiosas. Kardec perguntou: "E o suicídio de Luís tem desculpa pelo desvario que lhe acarretou a obstinação de Victorine?", "São Luís" responde: "Sim, pois o suicídio oriundo do amor é menos criminoso aos olhos de Deus, do que o suicídio de quem procura libertar-se da vida por motivos de covardia.". (grifos meus)

Observem que: no suicídio do pai que queria evitar que o filho fosse para a guerra, Kardec comenta abertamente que "O suicídio mais severamente punido é o resultante do desespero que visa a redenção das misérias terrenas". Já no caso do apaixonado suicida, "São Luís" fala do atenuante do "amor"! Ou seja, segundo "Kardec-São Luís" é menos punível quem se mata porque a noiva desistiu do casamento do que quem se mata devido a anos de dores lancinantes com alguma doença terminal, como o câncer. O comentário de Kardec ao fim do relato desse caso é ainda mais condenável do que o que já está exposto acima (página 312):

"Por isso se vê ainda uma nova confirmação da justiça que preside à distribuição das penas, conforme o grau de responsabilidade dos culpados É à moça, neste caso, que cabe a maior responsabilidade, por haver entretido em Luís, por brincadeira, um amor que não sentia. Quanto ao moço, este já é de sobejo punido pelo sofrimento que lhe perdura, mas a sua pena é leve, porquanto apenas cedeu a um movimento irrefletido em momento de exaltação, que não à fria premeditação dos suicidas que buscam subtrair-se às provações da vida." (grifos meus)

Então, segundo o juízo de Kardec, é à moça que cabe a maior pena??!! O rapaz abandona a mesa do almoço durante a discussão, sai da casa da sogra dizendo que não vai mais se casar, volta somente no dia seguinte arrependido, e tem que ser recebido com braços abertos? Passa alguns dias até tentar uma última vez ser aceito, decide se matar sem revelar isso à moça (sabe Deus se ele já não matutava isso há dias), se mata, e a culpa maior é da moça? De onde Kardec tirou a informação de que "a moça não amava o rapaz, que estava apenas levando avante uma brincadeira"? O jornal de onde este fato foi colhido (Siècle, 7 de abril de 1858, segundo consta na Revista Espírita, de novembro de 1858, página 262, em artigo que Kardec colocou com o título: Problemas Morais: Suicídio por Amor) não dá subsídios para tal conclusão. O "espírito suicida" disse de fato que ela não o amava, mas que ela se iludia, e que foi a briga que lhe abriu os olhos. Nem mesmo "São Luís" diz que ela havia mantido a relação com o moço "por brincadeira", como coloca Kardec. De onde Kardec tirou essa informação e esse julgamento? Novamente, "São Luís" parece ter emitido pensamentos incompatíveis com os de um Espírito Superior. Mas Kardec foi ainda pior.

Em outra ocasião (Revista Espírita, junho de 1859, página 162), Kardec indagou a "São Luís": "A raça negra é verdadeiramente uma raça inferior?". "São Luís" respondeu: "A raça negra desaparecerá da Terra. Ela foi feita para uma latitude diferente da vossa.". É compreensível que Kardec possuísse idéias relativamente racistas com relação às raças negras, e igualmente que tivesse informações de validade científica altamente duvidosas. Mas o mesmo não pode ser dito de "São Luís", supostamente um Espírito Superior.

Há também, na Revista Espírita de agosto de 1864, página 241, uma carta muito interessante enviada para Kardec de um leitor da cidade de Bourdeaux (França). Esse leitor comenta que teria lido no Civilisateur (do autor Lamartine, pelo que pude entender) as cartas de Cristóvão Colombo sobre a situação do México no momento de sua descoberta. É descrita então a situação paradisíaca das tribos indígenas locais de então, seres humanos vivendo aparentemente em verdadeira "Idade de Ouro", quase um Céu na Terra. E daí, vieram as invasões européias, os extermínios, torturas, violências diversas, etc. O leitor então pergunta a Kardec onde está a justiça nisso? Kardec expõe então a resposta dada pelos espíritos após submeter-lhes tal questão, e a comunicação espírita recebida (em 8 de julho de 1864, através do médium Sr. D'Ambel) esclarece porque tal genocídio na verdade era algo justo. O "espírito" comunicante começa, na mensagem, falando dos Incas, que nada tinham a ver com a história (pois os Incas habitaram regiões a milhares de quilômetros do México). Fala depois sobre os Aztecas (mas bem menos), que de fato habitavam o México, mas que nada tinham a ver com os povos descritos pelo missivista. Enfim, acreditando saber do que falava, o suposto espírito fez diversas afirmações incorretas do ponto de vista histórico, não respondeu à questão, justificou o genocídio dizendo que os Incas estavam indolentemente estagnados ("Sob as aparências de uma certa bondade natural e com os costumes antes doces do que virtuosos, os Incas viviam negligentemente, sem progredir nem se elevar."), e terminou dizendo que as matanças não haviam sido tão intensas quanto se pensava: "De tanto sangue derramado que resta, pergunta-se de Bordeaux? Primeiro, o sangue derramado não foi tão considerável quanto se poderia crê-lo. Diante das armas de fogo e diante de alguns soldados de Pizarro, todo o continente invadido se submeteu como diante dos semi-deuses saídos das águas.". Na verdade, os Incas, que distavam milhares de quilômetros do objeto real da discussão, não tinham nada de bonzinhos. Eram um império conquistador, assim como os Aztecas. E com relação ao "sangue que não foi derramado": se não o foi, isso se deu, em boa parte, devido à uma dizimação prévia das populações nativas por doenças vindas junto com os conquistadores europeus, sendo que tais doenças conseguiram chegar no Império Inca antes dos próprios conquistadores (através de hospedeiros humanos indígenas), conforme relatado nos artigos Death by Disease (Archaeology. March/April 1992, Vol. 45, No. 2, pp. 47-49) e The Great Disease Migration (Newsweek. Special Issue, Fall/Winter 1991, pp. 54-56) nos seguintes endereços da internet: http://muweb.millersville.edu/~columbus/data/art/RAMENOF1.ART e http://muweb.millersville.edu/~columbus/data/art/COWLEY01.ART.

Os contatos de Colombo com "sociedades nativas paradisíacas" se deu principalmente em suas primeiras viagens ao continente americano, notadamente em ilhas do Caribe. Eram sociedades tribais habitantes das primeiras ilhas nas quais Colombo aportou. Tais populações estavam longe de ser tão "divinas" como os relatos iniciais de Colombo podem ter feito crer. Mas elas de fato eram muitíssimo "melhores" do que os brutais Aztecas e Incas. E sem dúvida elas eram ainda muito melhores do que os genocidas espanhóis.

Kardec acrescenta comentários bem comprometedores ao que já havia sido dito pelo espírito: "A esta judiciosa explicação, acrescentaremos algumas reflexões." (grifos meus), seguidas então de algumas visões incorretas a respeito das raças humanas, pelo menos à luz do que admite atualmente a ciência. No exemplar que eu tenho, a comunicação do espírito não aparece assinada. Mas Kardec comenta no corpo do texto (em seu comentário após as "judiciosas explicações" do espírito) que "Quanto aos indígenas do México, diremos, como Erasto, que havia neles costumes antes dóceis do que virtuosos,...". Erasto era um dos "guias" da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Um "Espírito Superior"; pelo menos para Kardec e seus colaboradores. Eu, de minha parte, tenho sinceramente algumas dúvidas se ele de fato era um "Espírito Superior".

Na verdade, sou da opinião de que, se formos tomar muito ao pé da letra a máxima segundo a qual "Todo espírito que, em suas comunicações, trai um mau pensamento, pode ser classificado na terceira ordem", é capaz de não sobrar muitos de nós (encarnados ou desencarnados, em todo o Universo) para contar a história... Talvez seja mais prudente adotarmos uma máxima um pouquinho mais comedida e, "antiquada": "Que atire a primeira pedra, aquele que não tiver pecados." 


 

Erros de Kardec na Aplicação da sua Metodologia:

Conforme já afirmei mais acima, um grande problema (ou erro) ao se utilizar o critério da "concordância das comunicações mediúnicas" está em não se mostrar tais comunicações, em não se realizar análises quantitativas e qualitativas com tais comunicações, e em não se divulgar os resultados de tais análises. É muito raro ver Kardec atender sequer minimamente a tais demandas. E quando ele atende, ele faz isso de modo muito questionável.

Na Revista Espírita de maio de 1863, página 156, há um artigo interessante com o título "Exame das Comunicações Medianímicas que Nos São Dirigidas". Este artigo, infelizmente, é muito mais um conjunto de justificativas para que Kardec não publique na Revista Espírita tudo quanto lhe é enviado (devido à falta de espaço, qualidade duvidosa ou fraca de muitos dos materiais, etc.) do que um "exame das comunicações" propriamente dito. Kardec diz que contam já mais de 3.600 comunicações que lhe foram enviadas (que, se publicadas, absorveriam cinco anos inteiros da Revista Espírita), e mais de 30 manuscritos mais ou menos longos. Afirma que, das comunicações, uma pequena minoria se constituem de materiais bem ruins, aparentando serem de espíritos inferiores, e que todas nessa condição eram originárias de médiuns isolados, e não de grupos. A maioria das demais comunicações eram boas, mais de 3.000 de uma moralidade irrepreensível e excelentes como fundo. Dos mais de 30 manuscritos extensos, apenas uns 5 ou 6, segundo Kardec, possuíam um valor real. Observe-se que, diante desse relato de Kardec, não temos a menor idéia sobre o conteúdo de tais comunicações, ou sobre quantas delas referendavam ou rejeitavam idéias presentes no Livro dos Espíritos, ou sobre que idéias específicas do Livros dos Espíritos poderiam estar sendo referendadas ou não.

Na Revista Espírita de novembro de 1858, página 296 (artigo "Da Pluralidade das Existências Corpóreas"), Kardec fala sobre a reencarnação, dizendo que é um tema ainda polêmico. Diz ainda que ele foi levado a acreditar na reencarnação devido às comunicações dos espíritos sobre esse assunto, e devido à lógica desse sistema explicativo. Afirma ele que desde que iniciou seus estudos espíritas, teve oportunidade de consultar "mais de cinqüenta médiuns" a respeito dessa questão da reencarnação, "e que, em nenhum caso, os Espíritos foram desmentidos sobre essa questão;" (grifos meus). Essa afirmação não pareceu muito clara para mim. É mais ou menos como se desse margem à seguinte pergunta: "Sim. Cinqüenta não desmentiram a reencarnação. Mas quantos afirmaram que há reencarnação, e quantos afirmaram que a reencarnação é compulsória e necessária?". Ou seja, nas raras vezes em que Kardec fornece números, ele o faz de modo precário e/ou ambíguo.

Na Revista Espírita de março de 1858, página 70 (artigo "Júpiter e Alguns Outros Mundos"), Kardec fala sobre as revelações a respeito da vida de seres corpóreos nos diversos planetas do nosso Sistema Solar. Ele apresenta tais informações do seguinte modo:

"Para nós, que fomos cem vezes testemunhas destas comunicações, que pudemos apreciá-las em seus menores detalhes, que nelas escrutamos o forte e o fraco, observamos as semelhanças e as contradições, encontramos todos os caracteres da probabilidade; todavia, não lhes damos senão sob o benefício de inventário, a título de notícias, aos quais cada um está livre para ligar a importância que julga adequada." (grifos meus)

Aqui temos "cem vezes" o testemunho e a análise minuciosa de comunicações levando a uma identificação de "todos os caracteres da probabilidade". Mas acontece que esta "revelação" específica está em profundo desacordo com o que é admitido pela ciência atualmente (vida relativamente semelhante à humana em Marte, Vênus, Júpiter, etc.). Se compararmos isso com os "cinqüenta não desmentidos" quanto à reencarnação, seríamos talvez levados atualmente à conclusão de que há "aí" (ou seja, na questão da reencarnação) "todos os caracteres da improbabilidade".

Finalmente, na Revista Espírita de janeiro de 1862, página 16, Kardec dirige (publica em artigo) seis perguntas "polêmicas", e solicita que grupos espíritas do mundo (dentre os que lêem a Revista Espírita, ou que dela tomem conhecimento, obviamente) respondam às questões. Em abril de 1862, página 114, Kardec afirma que recebeu respostas "de todos os lados" para todas as perguntas. Mostra algumas relativas à sexta pergunta apenas, alegando falta de espaço, e dando a entender que mostraria as outras depois (creio que ele nunca chegou a mostrar). O que ele de fato mostrou foram seis comunicações que endossavam o que era expresso na pergunta 6 (uma das respostas era da Holanda; uma outra aparentemente da Alemanha; e as quatro restantes da França mesmo). O curioso é que a pergunta 6 se referia à idéia dos "Espíritos Decaídos", ou seja, à possibilidade dos espíritos retrogradarem na escala espírita. Tal ponto já vinha sendo divulgado por Kardec como estabelecido desde a primeira edição do Livro dos Espíritos, em abril de 1857 (e posteriormente referendado na segunda edição, de março de 1860), constando do resumo da "Doutrina Espírita" incluído na introdução do Livro dos Espíritos: "As diferentes existências corporais do Espírito são sempre progressivas e nunca retrógradas; todavia, a velocidade do progresso depende dos esforços de cada um para alcançar a perfeição." (O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec, página 11). Ou seja, seis respostas, majoritariamente francesas, sobre um assunto que já vinha sendo martelado há cinco anos.

O critério da "concordância entre comunicações", a despeito de suas falhas intrínsecas, parece ter sido uma tentativa sincera e até certo ponto diligente. Contudo, diante do que pude observar, não há para mim dúvida de que o embasamento que ele efetivamente dá ao que Kardec publicou nos livros kardecistas é um embasamento extremamente fraco e ilusório.

Um último ponto interessante a ser comentado com relação a falhas de Kardec ao usar seu método se refere à capacidade de Kardec de entender (ou sua "disponibilidade em aceitar"...) o que os "espíritos" diziam. Há um trecho interessante no Livro dos Médiuns onde Kardec estuda o fenômeno do transporte de objetos (em geral de pequeno tamanho, como flores, cinzeiros, etc.), mesmo atravessando portas fechadas, etc. No item 99, página 124, Kardec introduz a série de perguntas nos seguintes termos:

"As perguntas que se seguem foram dirigidas ao Espírito que os operara, mas as respostas se ressentem por vezes da deficiência dos seus conhecimentos. Submetemo-las ao Espírito Erasto, muito mais instruído do ponto de vista teórico, e ele as completou, aditando-lhes notas muito judiciosas. Um é o artista, o outro o sábio, constituindo a própria comparação dessas inteligências um estudo instrutivo, porquanto prova que não basta ser Espírito para tudo saber." (grifos meus - Erasto é o mesmo das explicações judiciosas a respeito dos Incas...)

Seguem-se várias perguntas e comentários sobre o fenômeno dos transportes. E, em especial, uma seqüência "pergunta/resposta/comentários" curiosa:

17ª P.: Entre os objetos que os Espíritos costumam trazer, não haverá alguns que eles próprios possam fabricar, isto é. produzidos espontaneamente pelas modificações que os Espíritos possam operar no fluido, ou no elemento universal?

R.: Por mim, não, que não tenho permissão para isso. Só um Espírito elevado o pode fazer.

18ª P.: Como conseguiste outro dia introduzir aqueles objetos, estando fechado o aposento?

R.: Fi-los entrar comigo, envoltos, por assim dizer, na minha substância. Nada mais posso dizer, por não ser explicável o fato.

20ª P.: (A Erasto) Pode um objeto ser trazido a um lugar inteiramente fechado? Numa palavra: pode o Espírito espiritualizar um objeto material, de maneira que se torne capaz de penetrar a matéria?

R.: É complexa esta questão. O Espírito pode tornar invisíveis, porém, não penetráveis, os objetos que ele transporte; não pode quebrar a agregação da matéria, porque seria a destruição do objeto. Tornando este invisível, o Espírito o pode transportar quando queira e não o libertar senão no momento oportuno, para fazê-lo aparecer. De modo diverso se passam as coisas, com relação aos que compomos. Como nestes só introduzimos os elementos da matéria, como esses elementos são essencialmente penetráveis e, ainda, como nós mesmos penetramos e atravessamos os corpos mais condensados, com a mesma facilidade com que os raios solares atravessam uma placa de vidro, podemos perfeitamente dizer que introduzimos o objeto num lugar que esteja hermeticamente fechado, mas isso somente neste caso.

(Grifos Meus)

Kardec não pareceu atentar devidamente para a diferença de opiniões entre esses dois espíritos. Pareceu ("pareceu", pelo menos) aceitar a explicação de Erasto (que era o seu "consultor" para assuntos técnico-científico espirituais nesse momento), que defende a idéia de que os espíritos não podem tornar os objetos interpenetráveis, apesar do outro espírito ter afirmado que penetrava com os objetos envolvidos em si. Isso era uma questão para ter sido esmiuçada mais a fundo durante o questionamento a ambos os espíritos, e, estranhamente, não foi. Note que Kardec disse que Erasto era o "sábio", e o outro espírito o "artista". Mas em nenhum momento Kardec disse que o outro espírita era incompetente para perceber o que ele próprio fazia e como o fazia.

Fatos como este, e como os demais descritos mais acima, me levam a ter sérias dúvidas sobre a propriedade das interpretações de Kardec a respeito do que diziam os "espíritos".


 

Situações Onde Kardec Pareceu Não Usar Sua Própria Metodologia:

Em três situações importantes, pelo menos, Kardec pareceu tomar graves decisões sem consultar seus colaboradores. Primeiro, quando, segundo Wantuil e Thiesen (Allan Kardec - Pesquisa Bibliográfica e Ensaios de Interpretação. Volume 3, pág. 22), Kardec "redigiu o primeiro número da Revista Espírita, sem nada ter informado a seus amigos."(em 1858). Segundo, quando realizou a segunda edição do Livro dos Espíritos (em 1860), que segundo descrição de Canuto Abreu se deu "atendendo somente ao seu critérium, confiando apenas em seu discernimento." (O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec, página XV). Há algumas diferenças curiosas entre a primeira e a segunda edição do Livro dos Espíritos, que discutirei em detalhes mais abaixo. [Nota importante em agosto de 2005: O estudioso do kardecismo Sílvio Chibeni refuta essa visão de Canuto de Abreu. Neste link, Chibeni demonstra que Kardec de fato incluiu na segunda edição do Livro dos Espíritos uma nota anexa aos "Prolegômenos" afirmando que os espíritos revisaram também tal segunda edição minuciosamente. Essa nota foi retirada a partir das edições posteriores a 1863, contudo é pertinente para tais edições também]. O terceiro momento no qual Kardec agiu, estranhamente, sozinho, foi quando da publicação do livro O Evangelho Segundo o Espiritismo (em 1864), que, até o momento em que ele entregou o material para impressão, ninguém sabia de que assunto tal livro tratava.

É um pouco difícil na verdade identificar se, nos pontos que vou analisar agora, o que teria ocorrido seria um "não uso do método" ou um "mal uso do método". Eu tendo a considerar que houve, sim, uma desconsideração (ou seja, "não uso") do método. Os dois pontos que vou analisar são, primeiro: algumas diferenças entre a primeira e a segunda edição do Livro dos Espíritos. E segundo: as estranhas diferenças, ou melhor, alterações, no texto assinado como "Jesus de Nazaré" que aparece originalmente no Livro dos Médiuns (de 1861. Capítulo 31, página 458 e 459), e que, posteriormente, em O Evangelho Segundo o Espiritismo (de 1864), aparece com a assinatura "Espírito de Verdade" (página 129).

Para os estudiosos do espiritismo kardecista que queiram tentar obter uma cópia da antiga edição brasileira do Livro dos Espíritos primeira edição (em alguma livraria de livros antigos), incluí abaixo uma foto de frente e lado do mesmo. A identificação do livro é: O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec, 1857 - Texto em Fac-Simile Versão em Face, Primeiro Centenário, 1957. tradução de Canuto Abreu. 1a edição. Companhia Editora Ismael. São Paulo. 1957. Este livro tem as seguintes dimensões: 23 cm de altura, 16 cm de largura, e quase 4 cm de espessura. Canuto Abreu realizou essa obra (a tradução do livro) em três meses! Eu não trabalho com tradução, mas me pareceu bem pouco tempo. Ele terminou suas notas introdutórias com o seguinte, e altamente intrigante, comentário:

"No espaço de tempo entre o pedido oficial de alguns Confrades (O pedido oficial do Conselho Federativo Nacional, do Rio de Janeiro, é datado de 9 de Outubro de 1956, e o da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo, de 18 do mesmo mês e ano), este modesto trabalho foi tudo quanto o Tradutor pode preparar para a comemoração do primeiro centenário do Livro dos Espíritos. Ele espera, entretanto, se Deus o permitir, publicar um segundo volume, relatando a tradição histórica e esotérica do Primeiro Livro dos Espíritos." (grifos meus)

Foto Frente e Lado do Primeiro Livro dos Espíritos

____ _________

 

De uma forma bem resumida, Canuto Abreu define assim as diferenças do trabalho de Kardec no Livro dos Espíritos primeira edição e no Livro dos Espíritos segunda edição (O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec, página xxii - Notem que Canuto Abreu nesta seção do livro, entitulada "Notas do Tradutor", faz uma ampla comparação entre a primeira e a segunda edição. O que eu reproduzo abaixo é um ponto onde ele apresenta um resumo de um modo especial e bem informativo):

"A edição original continha 501 questões principais e várias acessórias. As edições sucessivas contem 1018 perguntas numeradas e múltiplas aditivas, além de comentários e notas privativas do Mestre."

"Finalmente, a edição de 1857 foi totalmente revista, corrigida e homologada por Espíritos incumbidos por Deus de instituir "a verdadeira religião, a Religião Natural, aquela que emana do coração e sobe diretamente a Deus" (Obras Póstumas, página 332). As demais, a partir de 1860, em mais da metade de seu texto, aprovadas tão somente pelo Missionário que fundou a Filosofia Espírita." (grifos meus)

Kardec anuncia a segunda edição do Livro dos Espíritos nos seguintes termos (Revista Espírita, março de 1860, página 96):

-

O LIVRO DOS ESPÍRITOS.

Segunda edição

INTEIRAMENTE REFUNDIDA E CONSIDERAVELMENTE AUMENTADA.

Aviso sobre esta nova edição.

Na primeira edição desta obra, anunciamos uma parte suplementar. Ela deveria se compor de todas as perguntas que não encontraram ali lugar, onde as circunstâncias ulteriores e novos estudos deveriam dar nascimento; mas como são todas elas relativas, há algumas das partes já tratadas e das quais são o desenvolvimento, sua publicação isolada não apresentaria nenhuma continuidade. Preferimos esperar a reimpressão do livro para fundir todo o conjunto, e nisto aproveitamos para dar, na distribuição das matérias, uma ordem muito mais metódica, ao mesmo tempo que podamos tudo o que tinha duplo emprego. Esta reimpressão pode, pois, ser considerada como uma obra nova, embora os princípios não hajam sofrido nenhuma mudança, com um número muito pequeno de exceções, que são antes complementos e esclarecimentos que verdadeiras modificações. Esta conformidade nos princípios emitidos, apesar da diversidade das fontes onde os haurimos, é um fato importante para o estabelecimento da ciência espírita. Nossa correspondência nos prova mesmo que comunicações em todos os pontos idênticas, se não pela forma ao menos pelo fundo, foram obtidas em diferentes localidades, e isso bem antes da publicação do nosso livro, que veio confirmá-las e dar-lhes um corpo regular. A história, de seu lado, atesta que a maioria destes princípios foram professados por homens eminentes de tempos antigos e modernos, e vem trazer-lhe sua sanção. (grifos meus)

 

Alguns pontos, pelo menos, não parecem se enquadrar nessa descrição de Kardec segundo a qual "os princípios não hajam sofrido nenhuma mudança, com um número muito pequeno de exceções, que são antes complementos e esclarecimentos que verdadeiras modificações.". Apesar de eu não ter realizado um exame exaustivo das diferenças entre a primeira e a segunda edição do Livro dos Espíritos, pude identificar pelo menos três pontos de grande importância doutrinária (pelo menos a meu ver) que sofreram alteração.

Primeiro, na primeira edição do Livro dos Espíritos era dito que (com minhas palavras): a alma do homem, em suas encarnações anteriores e cada vez menos evoluídas, nunca encarnou em animais; ou seja, nossa alma não provem da evolução da alma de "seres inferiores" da criação (animais, vegetais, etc.). As diversas espécies animais possuem algo que pode ser chamado de alma, e que de fato progride, mas sempre dentro de suas próprias espécies, e progredindo somente até um determinado ponto, nunca chegando ao nível do homem (moral ou intelectual). Na segunda edição, as coisas já são bem diferentes: o princípio espiritual passa pelas encarnações nos seres inferiores da criação progressivamente até atingir a humanidade. Não há mais a idéia das várias "estirpes" de alma, mas sim uma unidade em toda a natureza. Pode-se perceber pelas perguntas da primeira edição do Livro dos Espíritos, de 1857, que Kardec já parecia "forçar a barra" para que a alma dos animais fosse a precursora da alma do homem.

Um dado curioso é que a "Hipótese da Evolução Espiritual Ascendendo pelos Diversos Filos dos Organismos Vivos" de Kardec corre de certo modo em paralelo com a visão evolutiva material (ou materialista) de Darwin. Dentre as diversas doutrinas reencarnacionistas, a doutrina kardecista parece ser a única que postula isso, ou pelo menos ter sido talvez uma dos primeiras a postular isso, ou talvez ter sido "a origem" de tal versão do reencarnacionismo. Pelo menos se aceitarmos as informações do filósofo inglês Paul Edwards, conforme expresso em seu livro "Reincarnation: a Critical Examination" (de 1996). Segundo Edwards (página 225):

"Reencarnacionistas que defendem essa versão do reencarnacionismo não dizem que a seqüência de corpos nos quais a alma encarna é em qualquer modo paralelo à seqüência postulada pelos evolucionistas. Um ser humano, como vimos, pode se transformar em um cachorro ou em um mosquito, e, por outro lado, a alma pode ter recentemente estado em um corpo de um pássaro ou de um castor."

É necessário dizer, contudo, que Edwards é um pseudo-cético cujos trabalhos apresentam uma qualidade duvidosa. Curiosamente, um pouco mais à frente nesse mesmo livro de Edwards (página 234), ele menciona o livro de Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor (de 1922). Nesse livro, Léon Denis de fato fala (naturalmente, haja vista que ele é um dos continuadores da obra de Kardec) justamente dessa versão do reencarnacionismo que o "filósofo" Edwards alega não existir (página 166 do livro de Denis):

"Estas são as almas jovens, emanadas há menos tempo do Foco Eterno, foco inextinguível que despende sem cessar feixes de Inteligências que descem aos mundos da matéria para animarem as formas rudimentares da vida. Chegadas à humanidade, tomarão lugar entre os povos selvagens e as raças bárbaras que povoam os continentes atrasados, as regiões deserdadas do Globo. E, quando, afinal, penetrarem em nossas civilizações, ainda facilmente se deixam reconhecer pela falta de desembaraço, de jeito, pela sua incapacidade para todas as coisas e, principalmente, pelas suas paixões violentas, pelos seus gostos sanguinários, às vezes até pela sua ferocidade; mas, essas almas ainda não desenvolvidas subirão por sua vez a escala das graduações infinitas por meio de reencarnações inúmeras."

De qualquer maneira, a opinião de Edwards parece indicar que há muito poucas versões do reencarnacionismo que postulam que as reencarnações seguem em paralelo à linha de desenvolvimento da espécie humana através dos filos vivos. Talvez a versão kardecista tenha sido a primeira, ou mesmo a única.

Então, em sessões espíritas provavelmente ao longo do ano de 1856 (já que o Livro dos Espíritos tem sua primeira edição em abril de 1857), Kardec aparentemente (e possivelmente) "força a barra" para que a alma dos animais evolua para a do homem, publicando em 1857 um livro onde isso não é aceito (aliás, categoricamente!), mas que já consagra a não possibilidade da "retrogradação". Em 1858, Wallace faz contato com Darwin, e Darwin resolve apressar o lançamento do seu clássico livro A Origem das Espécies, agora com co-autoria de Wallace. Em 1859, é lançada a Origem das Espécies na Inglaterra. Em 1860, Kardec lança a segunda edição do Livro dos Espíritos, com uma visão "espiritual" paralela à visão "material" de Darwin e Wallace. Wallace era espírita, ou passou a ser mais tarde, mas não creio que Kardec tenha sido influenciado por esses eventos na Inglaterra, e Darwin foi mesmo rejeitado em suas idéias por algum tempo. Isso tudo parece ou uma curiosa coincidência, ou um fato muito estranho de difícil explicação (eu não descartaria a possibilidade de haver algo de "sobrenatural" aí...). De qualquer maneira, é importante lembrar que a idéia da origem das espécies através da "evolução" de espécies "inferiores" (ou melhor dizendo, "anteriores") já rondava as sociedades européias há algumas décadas, ainda que de modo bem precário (conforme relatado pelo evolucionista Douglas J. Futuyma em seu livro Biologia Evolutiva, capítulo um: A Origem e Impacto do Pensamento Evolutivo).

O mais estranho, contudo, nessa questão da evolução anímica dos animais é que na Revista Espírita nos anos de 1864 e 1865 Kardec incluiu artigos dizendo claramente que a questão não estava ainda resolvida! Na edição de março de 1864 (artigo: Da Perfeição dos Seres Criados, páginas 65 a 72), Kardec afirma:

"A questão dos animais pede alguns desenvolvimentos. Eles têm um princípio inteligente, isto é incontestável. De que natureza é esse princípio? Que relações tem com o do homem? É estacionário em cada espécie, ou progressivo passando de uma espécie à outra? Qual é para ele o limite do progresso? Caminha paralelamente ao homem, ou bem é o mesmo princípio que se elabora e ensaia a vida nas espécies inferiores, para receber mais tarde novas faculdades e sofrer a transformação humana? São tantas questões que ficaram insolúveis até este dia, e se o véu que cobre esse mistério não foi ainda levantado pelos Espíritos, é que isso teria sido prematuro: o homem não está ainda maduro para receber tanta luz. Vários Espíritos deram, isto é verdade, teorias a esse respeito, mas nenhuma tem um caráter bastante autêntico para ser aceita como verdade definitiva; não se podem, pois, considerá-las, até nova ordem, senão como sistemas individuais. Só a concordância pode dar-lhes uma consagração, porque aí está o único e verdadeiro controle do ensino dos Espíritos." (grifos meus)

E com relação ao ano seguinte, em 1865, é interessante reproduzir um trecho do artigo "Manifestação do Espírito dos Animais", da seção "Perguntas e Problemas" (maio de 1865, páginas 129 a 134):

"Até o presente, a ciência não fez senão constatar as relações fisiológicas entre o homem e os animais; ela nos mostra, no físico, todos os animais da cadeia dos seres sem solução de continuidade; mas entre o princípio espiritual dos dois Espíritos existia um abismo; se os fatos psicológicos, melhor observados, vêm lançar um ponto sobre esse abismo, isso será um novo passo de fato para a unidade da escala dos seres e da criação. Não é pelos sistemas que se pode resolver esta grave questão, é pelos fatos; se ela deverá sê-lo um dia, o Espiritismo, criando a psicologia experimental, só ele poderá fornecer-lhe os meios. Em todos os casos, se existem pontos de contato entre a alma animal e a alma humana, isso não pode ser, do lado da primeira, senão da parte dos animais mais avançados. Um fato importante a constatar é que, entre os seres do mundo espiritual, jamais foi feita menção de que existam Espíritos de animais. Pareceria disso resultar que estes não conservam a sua individualidade depois da morte, e, de um outro lado, essa cadelinha que teria se manifestado, pareceria provar o contrário."

"Vê-se, segundo isto, que a questão está ainda pouco avançada, e não é preciso se apressar em resolvê-la. Tendo sido lida a carta acima à Sociedade de Paris, a comunicação seguinte foi dada a este respeito."

(Segue-se abaixo, a mensagem mediúnica recebida em Paris, 21 de abril de 1865. - Médium, Sr. E. Vézy.)

"Vou tocar uma grave questão esta noite, falando-vos das relações que podem existir entre a animalidade e a humanidade. Mas neste recinto, quando, pela primeira vez, minhas instruções vos ensinaram a solidariedade de todas as existências e as afinidades que existem entre elas, um murmúrio se elevou numa parte desta assembléia, e eu me calei. Deveria fazer o mesmo hoje, apesar de vossas perguntas? Não, uma vez que vais entrar no caminho que eu vos indiquei."

"Mas tudo não se detém em crer somente no progresso incessante do Espírito, embrião na matéria e se desenvolvendo ao passar pelo exame severo do mineral, do vegetal, do animal, para chegar à humanimalidade, onde somente começa a se ensaiar a alma que se encarnará, orgulhosa de sua tarefa, na humanidade. Existem entre essas diferentes fases laços importantes que é necessário conhecer e que eu chamarei períodos intermediários ou latentes; porque é aí que se operam as transformações sucessivas. Falar-vos-ei mais tarde dos laços que ligam o mineral ao vegetal, o vegetal ao animal; uma vez que um fenómeno que vos espanta nos leva aos laços que ligam o animal ao homem, vou vos entreter com estes últimos." (grifos meus)

É bastante estranho, à luz de todos esses fatos, que já em 1860 na segunda edição do Livro dos Espíritos exista uma indicação tão clara e tão resolvida no sentido da alma humana ter sua origem na evolução das almas de seres "inferiores" da criação. Isso definitivamente não parece compatível com o método da "sanção universal através de comunicações obtidas por diversos 'espíritos', diversos médiuns, em diversos locais, e em diferentes épocas". Parece mais uma "forçação de barra" de Kardec, primeiro divulgando e ensinando fartamente uma "doutrina", para só depois indagar a uma comunidade relativamente restrita e relacionada entre si (e leitora dos trabalhos de Kardec) a respeito de tal questão doutrinária.

Correção importante: na verdade, Kardec comenta na segunda e definitiva edição do Livro dos Espíritos, de 1860, que há divergências entre a opinião dos espíritos com relação a se a alma humana provém da dos animais ou não (Capítulo XI, Dos Três Reinos. Perguntas de 585 a 613, seguidas de comentário de 6 parágrafos). Contudo, ele faz isso apenas nos comentários após a seqüência de perguntas-respostas sobre o assunto. Nas perguntas-respostas, Kardec parece claramente conduzir a lógica do diálogo para a opinião de que a alma humana procede da dos animais. E é apresentada apenas essa visão. Nos comentários, ele expõe em detalhes a divergência; mas com relação à idéia dos animais possuírem uma separação anímica completa dos humanos, ele diz que tal idéia "...é mais conforme à dignidade do homem...". Ou seja, ele me parece assinalar, indiretamente, que a idéia da alma humana provir da dos animais é mais lógica e justa, ao passo que a idéia concorrente atende quase que meramente aos caprichos egocêntricos do ser humano. Kardec frisa ainda o aspecto secundário de toda essa questão.

Minha impressão atual é que nessa questão da origem da alma humana, ou do destino da alma animal, Kardec posicionou-se de modo bem mais cientificamente claro e coerente do que eu havia anteriormente escrito nesse meu texto. De qualquer maneira, continuo achando que os comentários que fiz e trechos que incluí sobre isso aqui são relevantes para a discussão do quanto Kardec mostrava ou não da sua aplicação do método da sanção universal. Não sabemos, por exemplo, quantos e quais espíritos em 1860 (segunda e definitiva edição do Livro dos Espíritos) endossavam a idéia de que a alma humana provém da dos animais. E, ao mesmo tempo, sabemos que  mesmo em 1857 (primeira edição do Livro dos Espíritos) Kardec já parecia claramente "forçar a barra" para que os  "espíritos" assumissem tal idéia, apesar de nenhum a endossar nessa época. A meu ver, o saldo final disso continua sendo um enfraquecimento da validade do procedimento investigativo de Kardec.


Corrigindo a "Correção Importante" acima...: surpreendentemente, Kardec na verdade só incluiu os comentários sobre os espíritos que advogavam que a linhagem espiritual humana não seria proveniente da linhagem espiritual dos animais na quarta edição do Livro dos Espíritos! (ainda em 1860). Ou seja, tanto na segunda edição, de 1860, quando na terceira edição, também de 1860, o trecho pertinente que fala sobre a origem da alma humana saiu totalmente sem comentários a respeito da visão que havia sido anteriormente divulgada na primeira edição de 1857, segundo a qual a alma humana não seria proveniente da alma dos animais. Vide comentários de Kardec após a questão 613. Até a terceira edição do Livro dos Espíritos, os comentários após a questão 613 continham apenas um parágrafo. Somente a partir da quarta edição é que apareceram os parágrafos 2, 3, 4, e 5, iniciando o parágrafo 2 por "O ponto de partida do Espírito é uma dessas questões que se ligam ao princípio das coisas"... Ou seja, Kardec, na segunda e terceira edição do Livro dos Espíritos, divulgou versão totalmente diferente do que constava (sobre um tema bem importante)  na primeira edição do Livro dos Espíritos, sem esclarecer como e porque tal mudança se deu!

Além de tal alteração, é também interessante que a partir da décima edição do Livro dos Espíritos (1863), Kardec não mais incluiu a nota em Prolegômenos que dizia que a obra sofrera revisão minuciosa dos Espíritos. Igualmente, na quinta edição (1861), ele retirou da resposta da questão 586 a parte onde os Espíritos diziam que as plantas têm vida intuitiva também (até então era mantida a resposta dos Espíritos segundo a qual as plantas não pensam, só tendo a vida orgânica e intuitiva). - Vide versão comemorativa dos 150 anos do Livro dos Espíritos editada pela FEB em 2006, tradução de Evandro Noleto Bezerra, contendo todas as alterações efetuadas por Kardec nas diversas edições do Livro dos Espíritos ao longo de sua vida.



Um segundo ponto
alterado foi o que definia em que momento se dá a união da alma ao corpo. Na primeira edição, tal união se dava no nascimento! Na segunda, ela se dava na concepção, e ia se fortalecendo até o ponto máximo no momento do nascimento. Esse pode parecer, à primeira vista, um ponto não muito importante, mas se levarmos em consideração o impacto social dessas diferentes visões para questões como "aborto" e "uso de embriões humanos para pesquisas biológicas", percebe-se que na verdade se trata de uma questão de altíssima importância humana.

O terceiro ponto onde percebi alteração foi na afirmação, na primeira edição, de que há, pelo menos às vezes, "predisposição física (cerebral, presumivelmente) para o assassinato" e (conseqüentemente) para as demais inclinações cruéis do ser humano. Na segunda edição, tal predisposição física já não existe mais, havendo apenas as predisposições do espírito... Isso possui gravíssimas conseqüências para a milenar discussão sobre a dualidade mente-corpo, sobre os limites e potencialidades do "livre-arbítrio", e também, conseqüentemente, sobre a importantíssima questão ético-teológica da "culpabilidade ou mérito pelos atos praticados".

Não há simplesmente meios de saber "como" e "por quê" tais alterações foram efetuadas na segunda edição do Livro dos Espíritos (em 1860). Do mesmo modo que em uma eleição onde os votos não tenham sido mostrados (e talvez nem mesmo devidamente contabilizados), temos apenas o resultado final, nem mais lógico, nem menos lógico do que o que havia anteriormente. Apenas, diferente, e mais de acordo com algumas das correntes de pensamento que sopravam naquela época, naquelas sociedades européias de então. Na melhor das hipóteses, se existirem de fato espíritos (e eu espero, sinceramente, que existam), e se Kardec tiver sido de fato inspirado "pelo Alto", então talvez as mudanças sejam uma descrição mais correta do Universo (tanto material como espiritual) do que as descrições constantes da primeira edição do Livro dos Espíritos. Mas, em termos científicos, aparentemente não temos muitas condições, pelo menos no momento, de saber se isso é deste modo ou não.

Antes de passar a uma análise das estranhas alterações efetuadas no texto que havia sido assinado como "Jesus de Nazaré", incluo nos três quadros abaixo os textos que exemplificam o que expus acima. Incluí também os originais em francês com relação ao Livro dos Espíritos primeira edição. Todos os trechos destes quadros abaixo relativos à primeira edição do Livro dos Espíritos foram extraídos do Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec, tradução de Canuto Abreu, 1957. Os trechos relativos à segunda edição foram retirados da versão atual do Livro dos Espíritos (FEB), e checados junto à versão francesa original do Livro dos Espíritos segunda edição (segunda impressão da segunda edição, 1860), disponível na internet no endereço: http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/le.htm, e também em arquivo pdf no endereço: http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/Livres/LE6.pdf

Origem Evolutiva do Espírito do Homem

 

Textos que constam do Resumo da Doutrina na Introdução do Livro dos Espíritos:

 

Livro dos Espíritos, primeira edição (1857). Introdução: Fundamentos da Doutrina Espírita - Espírito do Homem NÃO Procedendo dos espíritos dos animais.

"Em meio às diferentes espécies de seres corporais, Deus escolheu a humana para encarnação dos Espíritos; é o que dá à espécie humana superioridade moral e intelectual sobre todas as outras." (pág. 10)

"Parmi les différentes espèces d'êtres corporels, Dieu a choisi l'espèce humaine pour l'incarnation des esprits, c'est ce qui lui donne la supériorité morale et intellectuelle sur toutes les autres. (pág. 10)

"A encarnação dos Espíritos dá-se invariavelmente na espécie humana; seria grave erro supor que a alma humana ou Espírito se possa encarnar no corpo duma alimária." (pág. 11)

"L'incarnation des esprits a toujours lieu dans l'espèce humaine; ce serait une erreur de croire que l'âme ou esprit peut s'incarner dans le corps d'un animal." (pág. 11)

 

Livro dos Espíritos, segunda edição (1860). Introdução: Fundamentos da Doutrina Espírita. - Espírito do Homem Procedendo dos espíritos dos animais.

"Entre as diferentes espécies de seres corpóreo, Deus escolheu a espécie humana "para a encarnação dos Espíritos que chegaram a certo grau de desenvolvimento, dando-lhe superioridade moral e intelectual sobre as outras."(Ag 23)

"A encarnação dos Espíritos se dá sempre na espécie humana; seria erro acreditar-se que a alma ou Espírito possa encarnar no corpo de um animal."(Ag 25)

________________________________________________

 

Textos que constam do corpo do Livro dos Espíritos, aparecendo nas respostas às diversas questões ao longo do livro:

 

Livro dos Espíritos primeira edição (1857), página 65, questão 127 (alma do homem Não se Originando da alma dos animais):

- A alma do Homem não teria sido primitivamente o Princípio Vital de ínfimos seres vivos da Biocriação, que chegou, ex-vi de lei progressiva, até o ser humano, percorrendo os diversos graus da escala orgânica?

- Não! Não! Os Espíritos, homens somos desde natos. Cada ser vivo só progride na sua espécie e em sua essência. O Homem não foi jamais outro ser senão homo.

Comentário de Kardec: Seja qual for a diversidade das existências por que passe o nosso espírito ou nossa alma, elas pertencem todas à espécie humana; seria um erro supor que, ex-vi duma lei progressiva, o Homem haja passado pelos diferentes graus da escala orgânica para chegar a seu estado atual. Assim, sua alma não foi inicialmente o Principio Vital de ínfimos seres vivos da Biocriação que chegou sucessivamente ao grau superior: Ao Homem.

- L'âme de l'homme n'aurait-elle point été d'abord le principe de vie des derniers êtres vivants de la création pour arriver, par une loi progressive, jusqu'à l'homme en parcourant les divers degrés de l'échelle organique?

- Non! non! hommes nous sommes nés. Chaque chose progressé dans son espèce et dans son essence: l'homme n'a jamais été autre chose qu'un homme.

Comentário de Kardec: Quelle que soit la diversité des existences par lesquelles passe notre esprit ou notre âme, elles appartiennent toutes à l'humanité; ce serait une erreur de croire que, par une loi progressive, l'homme a passé par les différents degrés de l'échelle organique pour arriver à son état actuel. Ainsi son âme n'a point été d'abord le principe de vie des derniers êtres animés de la création pour arriver successivement au degré supérieur : à l'homme.

Livro dos Espíritos primeira edição (1857), página 140, questão 437 (alma do homem Não se Originando da alma dos animais):

- Uma vez que os animais têm a inteligência que lhes proporciona certa liberdade de ação, existirá neles um princípio independente do corpo?

- Sim, e que sobrevive ao corpo.

- Esse princípio conserva sua individualidade?

- Sim.

- Esse princípio é uma alma semelhante à do Homem?

- Não; a alma humana é um Espírito encarnado; ele será para os animais também uma alma, se quiserdes, isso depende do sentido que se der ao termo; mas será sempre uma alma inferior à do Homem. Existe entre a alma dos animais e a do Homem tão grande distância quanto entre a alma do Homem e Deus

- Os animais seguem também uma lei progressiva como os homens?

- Sim, razão pela qual em os Mundos superiores onde os homens estão mais aperfeiçoados, os animais o são também, mas sempre inferiores e submissos a o Homem.

- Nos Mundos superiores também os animais conhecem a deus?

- Não, o Homem é uma Divindade para eles.

- Os animais seriam, acaso, encarnação duma ordem inferior de Espíritos que constitui no Mundo Espírita categoria à parte?

- Sim, e eles não podem exceder a um certo grau de perfeição.

- Os animais também progridem, assim como o Homem, pela virtude da própria vontade, ou pela força das coisas?

- Pela força das coisas; eis por que não há absolutamente para eles expiação.

 

- Puisque les animaux ont une intelligence qui leur donne une certaine liberté d'action, y a-t il en eux un principe indépendant de la matière?

- Oui, et qui survit au corps.

- Ce principe conserve-t-il son individualilé?

- Oui.

- Ce principe est-il une âme semblable à celle de l'homme?

- Non; l'âme de l'homme est un esprit incarné; pour les animaux c'est aussi une âme, si vous voulez, cela dépend du sens que l'on attache à ce mot ; mais elle est toujours inférieure à celle de l'homme. Il y a entre l'âme des animaux et celle de l'homme autant de distance qu'entre l'âme de l'homme et Dieu.

- Les animaux suivent-ils une loi progressive comme les hommes?

- Oui, c'est pourquoi dans les mondes supérieurs où les hommes sont plus perfectionnés, les animaux le sont aussi, mais toujours inférieurs et soumis a l'homme.

- Dans les mondes supérieurs les animaux connaissent-ils Dieu?

- Non, l'homme est un Dieu pour eux.

- Les animaux seraient-ils l'incarnation d'un ordre d'esprits inférieurs formant dans le monde spirite une catégorie à part ?

- Oui, et qui ne peuvent dépasser un certain degré de perfection.

- Les animaux progressent-ils comme l'homme, par le fait de leur volonté, ou par la force des choses?

- Par la force des choses; c'est pourquoi il n'y a point pour eux d'expiation.

 

Livro dos Espíritos segunda edição (1860), página 299, questão 607 (alma do homem Se Originando da alma dos animais):

Dissestes (190) que o estado da alma do homem, na sua origem, corresponde ao estado da infância na vida corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e se ensaia para a vida. Onde passa o Espírito essa primeira fase do seu desenvolvimento?

"Numa série de existências que precedem o período a que chamais Humanidade."

a) - Parece que, assim, se pode considerar a alma como tendo sido o princípio inteligente dos seres inferiores da criação, não?

"Já não dissemos que todo em a Natureza se encadeia e tende para a unidade? Nesses seres, cuja totalidade estais longe de conhecer, é que o princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco e se ensaia para a vida, conforme acabamos de dizer. É, de certo modo, um trabalho preparatório, como o da germinação, por efeito do qual o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. Entra então no período da humanização, começando a ter consciência do seu futuro, capacidade de distinguir o bem do mal e a responsabilidade dos seus atos. Assim, à fase da infância se segue a da adolescência, vindo depois a da juventude e da madureza. Nessa origem, coisa alguma há de humilhante para o homem. Sentir-se-ão humilhados os grandes gênios por terem sido fetos informes nas entranhas que os geraram? Se alguma coisa há que lhe seja humilhante, é a sua inferioridade perante Deus e sua impotência para lhe sondar a profundeza dos desígnios e para apreciar a sabedoria das leis que regem a harmonia do Universo. Reconhecei a grandeza de Deus nessa admirável harmonia, mediante a qual tudo é solidário na Natureza. Acreditar que Deus haja feito, seja o que for, sem um fim, e criado seres inteligentes sem futuro, fora blasfemar da Sua bondade, que se estende por sobre todas as suas criaturas."

Momento da União da Alma ao Corpo

 

Livro dos Espíritos primeira edição (1857), página 55, questão 86:

- Em que momento a alma se une ao corpo?

- Ao nascimento.

- Antes do nascimento a criança tem uma alma?

- Não.

- Como vive então?

- Como as plantas.

Comentário de Kardec: A alma ou espírito se une ao corpo no momento em que a criança vê a luz e respira. Antes do nascimento a criança só tem vida orgânica sem alma. Ela vive como as plantas, tendo apenas o instinto cego de conservação, comum em todos os seres vivos.

 

- A quelle époque l'âme s'unit-elle au corps?

- A la naissance.

- Avant sa naissance l'enfant a-t-il une âme?

- Non.

- Comment vit-il?

- Comme les plantes.

Comentário de Kardec: L'âme, ou l'esprit, s'unit au corps au moment où l'enfant voit le jour et respire. Avant sa naissance l'enfant n'a que la vie organique sans âme. Il vit comme les plantes, n'ayant que l'instinct aveugle de conservation commun à tous les êtres vivants.

Livro dos Espíritos primeira edição (1857), página 59, questão 104:

- A alma é um ser independente do Princípio Vital?

- Sim, o corpo vivo é apenas envoltório; repetimo-lo sem cansar.

- O corpo vivo pode viver sem alma?

- Sim; e, não obstante, desde que o corpo cessa de viver, a alma o deixa. Antes de nascer o corpo, a alma não está nele; não há ainda união de alma e corpo; no entanto, depois que a união é formada, a morte do corpo rompe os liames que o prendiam à alma e o Espírito o abandona.

Comentário de Kardec: A alma é ser independente do Princípio Vital. Antes de nascer, o corpo pode viver sem alma, pela razão de não ter ainda havido união entre a alma e o corpo; mas depois que esta união fica formada, a alma deixa o corpo desde que este cesse de viver, visto como então os liames que existiam entre alma e corpo ficam rompidos. A vida orgânica pode mover um corpo sem alma, todavia a alma não pode habitar um corpo sem vida orgânica.

 

- L'âme est-elle indépendante du principe vital?

- Oui, le corps n'est que l'enveloppe; nous le répétons sans cesse.

- Le corps peut-il exister sans l'âme?

- Oui ; et pourtant dès que le corps cesse de vivre, l'âme le quitte. Avant la naissance, l'âme n'y est pas encore ; il n'y a pas union entre l'âme et le corps ; tandis qu'après que cette union a été établie, la mort du corps rompt les liens qui l'unissent à l'âme, et l'âme le quitte.

Comentário de Kardec: L'âme est indépendante du principe vital. Avant la naissance, le corps peut vivre sans âme, parce qu'il n'y a point encore eu d'union entre l'âme et le corps ; mais après que cette union s'est établie, l'âme quitte le corps dès que celui-ci cesse de vivre, parce qu'alors les liens qui existaient entre l'âme et le corps sont rompus. La vie organique peut animer un corps sons âme, mais l'âme ne peut habiter un corps privé de la vie organique.

Livro dos Espíritos segunda edição (1860), páginas 199 e 201, questões 344, 353, e 354:

344. Em que momento a alma se une ao corpo?

"A união começa na concepção, mas só é completa por ocasião do nascimento. Desde o instante da concepção, o Espírito designado para habitar certo corpo a este se liga por um laço fluídico, que cada vez mais se vai apertando até ao instante em que a criança vê a luz. O grito, que o recém-nascido solta, anuncia que ela se conta no número dos vivos e dos servos de Deus."

353. Não sendo completa a união do Espírito ao corpo, não estando definitivamente consumada, senão depois do nascimento, poder-se-á considerar o feto como dotado de alma?

"O Espírito que o vai animar existe, de certo modo, fora dele. O feto não tem pois, propriamente falando, uma alma, visto que a encarnação está apenas em via de operar-se. Acha-se, entretanto, ligado à alma que virá a possuir."

354. Como se explica a vida intra-uterina?

"É a da planta que vegeta. A criança vive vida animal. O homem tem a vida vegetal e a vida animal que, pelo seu nascimento, se completam com a vida espiritual."

Predisposição Orgânica Para o Mal e Para o Assassinato.

 

Livro dos Espíritos primeira edição (1857), página 140, questão 433:

- O Homem traz consigo ao nascer, por sua organização física, a predisposição para tais ou quais atos?

- Sim.

- A predisposição natural que traz o Homem para certos atos lhe tira seu livre arbítrio?

- Não, pois foi ele mesmo quem pediu para ter esta ou aquela predisposição. Se pediste para ter as disposições do assassínio, foi para teres que lutar contra esta propensão.

- Pode o Homem sobrepujar todas as suas tendências, por mais fortes que sejam?

- Sim, querer é poder.

Comentário de Kardec: A organização física do ser humano o predispõe a tais ou quais atos aos quais é impelido por uma força por assim dizer instintiva. Este pendor natural, se o conduzir ao Mal, poderá tornar-lhe o Bem mais difícil, não porém lhe tira a liberdade de fazer ou deixar de fazer. Com uma firme vontade e a Ajuda de Deus, se ele rezar com fervor e sinceridade, não haverá propensão que ele não possa sobrepujar, por mais veemente que ela seja. O Homem não poderia pois buscar uma excusa em sua organização sem abdicar a sua razão e a condição de ente humano, para se assemelhar à Alimária.

 

- L'homme apporte-t-il en naissant, par son organisation, une prédisposition à tels ou tels actes?

- Oui.

- La prédisposition nalurelle qui porte l'homme à certains actes lui ôle-t-elle son libre arbitre?

- Non, puisque c'est lui qui a demandé à avoir telle ou telle prédisposition. Si tu as demandé à avoir les dispositions du meurtre, c'est afin d'avoir a combattre contre celle propension.

- L'homme peut-il surmonter tous ses penchants, quelque véhéments qu'ils soient?

- Oui, vouloir c'est pouvoir.

Comentário de Kardec: L'organisation physique de l'homme le prédispose à tels ou tels actes auxquels il est poussé par une force pour ainsi dire instinctive. Cette propension naturelle, si elle le porte au mal, peut lui rendre le bien plus difficile, mais ne lui ôte pas la liberté de faire ou de ne pas faire. Avec une ferme volonté et l'aide de Dieu, s'il le prie avec ferveur et sincérité, il n'est point de penchant qu'il ne puisse surmonter, quelque véhéments qu'ils soient. L'homme ne saurait donc chercher une excuse dans son organisation sans abdiquer sa raison et sa condition d'être humain, pour s'assimiler à la brute.

Livro dos Espíritos segunda edição (1860), página 388, questão 845:

Não constituem obstáculos ao exercício do livre-arbítrio as predisposições

instintivas que o homem já traz consigo ao nascer?

"As predisposições instintivas são as do Espírito antes de encarnar. Conforme seja este mais ou menos adiantado, elas podem arrastá-las à prática de atos repreensíveis, no que será secundado pelos Espíritos que simpatizam com essas disposições. Não há, porém, arrastamento irresistível, uma vez que se tenha a vontade de resistir. Lembrai-vos de que querer é poder."

Livro dos Espíritos segunda edição, página 203, questão 361:

Qual a origem das qualidades morais, boas ou más, do homem?

"São as do Espírito nele encarnado. Quanto mais puro é esse Espírito, tanto mais propenso ao bem é o homem."

a) - Seguir-se-á daí que o homem de bem é a encarnação de um bom Espírito e o homem vicioso a de um Espírito mau?

"Sim, mas, dize antes que o homem vicioso é a encarnação de um Espírito imperfeito, pois, do contrário, poderias fazer crer na existência de Espíritos sempre maus, a que chamais demônios."

 

Como resultado de todas as alterações efetuadas, o frontispício do Livro dos Espíritos também mudou na segunda edição:

-

FILOSOFIA ESPIRITUALISTA

_________

O Livro dos Espíritos

contendo

Os Princípios da Doutrina Espírita

sobre a imortalidade da alma, a natureza dos espíritos, e suas relações com os homens; as leis morais, a vida presente, a vida futura, e o porvir da humanidade;

segundo o ensinamento dado pelos Espíritos superiores com ajuda de diversos médiuns, recolhidos e coordenados

Por Allan Kardec.

 


 

A "Verdade" sobre o "Espírito de Verdade":

Há no Livro dos Médiuns, no capítulo XXXI (Dissertações Espíritas), uma mensagem provavelmente obtida por psicografia direta (na seção Dissertações Acerca do Espiritismo) que foi publicada sem assinatura, mas que teria sido, segundo Kardec, originalmente assinada com o nome "Jesus de Nazaré" (comunicação número IX, página 458). Kardec acrescenta uma nota logo após essa comunicação, dizendo:

"Esta comunicação, obtida por um dos melhores médiuns da Sociedade Espírita de Paris, foi assinada com um nome que o respeito nos não permite reproduzir, senão sob todas as reservas, tão grande seria o insigne favor da sua autenticidade e porque dele se há muitas vezes abusado demais, em comunicações evidentemente apócrifas. Esse nome é o de Jesus de Nazaré." (grifos meus)

Kardec discorre ainda, com boa profundidade, sobre a cautela que é necessária em situações como essas envolvendo nomes de espíritos de altíssima elevação, etc. Na edição do Livro dos Médiuns publicada pela Livraria Allan Kardec Editora (LAKE), logo após a nota de Kardec aparece um comentário do tradutor, José Herculano Pires, um espírita brasileiro de grande renome. O comentário dele, na íntegra, é o seguinte (página 408):

"Esta comunicação aparece, um pouco modificada, no cap. VI de O Evangelho Segundo o Espiritismo com a assinatura de Espírito da Verdade, datada de Paris, 1861. Sabendo-se que Kardec não tomava decisões dessa importância por seu próprio arbítrio, e que poderia ter deixado de incluir ali essa comunicação, é evidente que a assinatura primitiva deve ter sido corrigida pelo próprio Espírito comunicante, como sempre acontece quando a imaginação do médium interfere nos ditados. No caso, o conteúdo da mensagem é realmente de valor. Note-se o cuidado seguido por Kardec e por ele recomendado, mas até hoje pouco seguido, no tocante às comunicações assinadas por nomes venerados. É conveniente ler e reler as suas comunicações acima. (Nota do Tradutor )". (grifos meus)

Esse evento é um episódio muito curioso, que percebi pela primeira vez em fins de 1998 (foi justamente o comentário acima de Herculano Pires que me despertou para esse fato). Eu diria mesmo que é o episódio mais intrigante que já encontrei em toda minha leitura de obras kardecistas, e, com toda a sinceridade, até agora (ano de 2003) não consegui realmente entender o que tal episódio pode significar para a credibilidade da obra e dos procedimentos de Kardec.

Herculano Pires diz: "...um pouco modificada...". Tal afirmação trata-se na verdade de um enorme eufemismo. As modificações foram numerosas, bastante significativas, e muito estranhas, para não dizer suspeitas. Herculano comenta ainda que, no Evangelho Segundo o Espiritismo, tal comunicação está datada como Paris, 1861 (aliás, ano da publicação da primeira edição do Livro dos Médiuns). Mas nas edições a que tive acesso, a data que consta é de 1860, tanto na terceira e "definitiva" edição do Evangelho Segundo o Espiritismo, de 1866, como na primeira edição do Evangelho Segundo o Espiritismo, de 1864, (página 86 da cópia do original em francês publicado pela FEB. Esta primeira edição tinha o nome de Imitation de L'Évangile Selon le Spiritisme, cuja tradução correta parece ser "Prática do Evangelho Segundo o Espiritismo").

Como uma alteração dessa monta, envolvendo uma entidade tão importante (assumindo que havia pelo menos a "possibilidade" que de fato se tratasse de Jesus de Nazaré) pode se dar? Isso é uma questão de gravíssima importância para sabermos como Kardec (ou colaboradores, "encarnados" ou não) manuseava as comunicações espíritas com as quais ele tinha contato, e como ele informava ou não sobre os motivos e critérios para tais manuseamentos. E, conseqüentemente, para que possamos construir um conhecimento crítico a respeito da confiabilidade de tais manuseamentos de Kardec.

Herculano Pires afirma: "é evidente que a assinatura primitiva deve ter sido corrigida pelo próprio Espírito comunicante, como sempre acontece quando a imaginação do médium interfere nos ditados.". Discordo de Herculano com relação a essa frase em alguns pontos. Primeiro, acho um pouco exagerado dizer que sempre que a imaginação do médium interfere indevidamente, o espírito posteriormente corrige a assinatura (e talvez o conteúdo também?). Depois, a assinatura pode até ter sido de fato corrigida "pelo espírito comunicante"; mas por quê a "correção" teria mais validade do que a assinatura original? Se tivesse havido, por exemplo, cinco comunicações refutando tal assinatura, de preferência por médiuns diferentes, poderia-se até dar maior credibilidade para tal alteração. Mas de fato houve a alteração (na assinatura e no texto), a alteração é de gravidade, e ninguém foi informado a respeito de "como" e "por quê" isso se deu. Um outro ponto importante em que eu discordo de Herculano Pires é quando ele parece achar que "Jesus" e "Espírito de Verdade" são entidades diferentes. Da leitura das obras de Kardec, a mim parece claro que ambos são a mesma coisa, pelo menos para todos os efeitos práticos. Por exemplo, a primeira edição do Evangelho Segundo o Espiritismo foi anunciada por uma comunicação assinada pelo "Espírito de Verdade", em dezembro de 1864 na Revista Espírita, página 399. Observem o conteúdo de tal mensagem, seguida de uma nota cautelosa de Kardec:

-

COMUNICAÇÃO ESPIRITA.

A propósito de A Imitação do Evangelho. (Bordeaux, maio de 1864; grupo de Saint-Jean. - Médium, Sr. Rul.)

Um novo livro acaba de aparecer; é uma luz mais brilhante que vem clarear o vosso caminho. Há dezoito séculos eu vim, por ordem de meu Pai, trazer a palavra de Deus aos homens de vontade. Esta palavra foi esquecida pela maioria, e a incredulidade, o materialismo, vieram abafar o bom grão que eu tinha depositado sobre vossa Terra. Hoje, por ordem do Eterno, os bons Espíritos, seus mensageiros, vêm sobre todos os pontos do globo fazer ouvir a trombeta retumbante. Escutai suas vozes; são aquelas destinadas a vos mostrar o caminho que conduz aos pés do Pai celeste. Sede dóceis aos seus ensinos; os tempos preditos são chegados; todos as profecias serão cumpridas.

Pelos frutos se reconhece a árvore. Vede quais são os frutos do Espiritismo: casais, onde a discórdia havia substituído a harmonia, viu-se retornar à paz e à felicidade; os homens que sucumbiam sob o peso de suas aflições, despertados aos assentos melodiosos das vozes de além-túmulo, compreenderam que caminhavam em falso caminho, e, ruborizados de suas fraquezas, arrependeram-se, e pediram ao Senhor a força de suportar suas provas.

Provas e expiações, eis a condição do homem sobre a Terra. Expiação do passado, provas para fortalecê-los contra a tentação, para desenvolver o Espírito pela atividade da luta, habituá-lo a dominar a matéria, e prepará-lo para os gozos puros que o esperam no mundo dos Espíritos.

Há várias moradas na casa de meu Pai, eu lhes disse há dezoito séculos. Estas palavras, o Espiritismo veio fazer compreendê-las. E vós, meus bem-amados, trabalhadores que suportais o ardor do dia, que credes ter a vos lamentar da injustiça da sorte, bendizei vossos sofrimentos; agradecei a Deus que vos dá os meios de quitar as dívidas do passado; orai, não dos lábios, mas do vosso coração melhorado, para vir tomar, na casa de meu Pai, a melhor morada; porque os grandes serão rebaixados; mas, vós o sabeis, os pequenos nos e os humildes serão elevados.

O ESPÍRITO DE VERDADE.

Nota. - Sabe-se que tomamos tanto menos a responsabilidade dos nomes quanto pertençam a seres mais elevados. Nós não garantimos mais essa assinatura do que muitas outras, nos limitando a entregar esta comunicação à apreciação de todo Espírita esclarecido. Diremos, no entanto, que não se pode nela desconhecer a elevação do pensamento, a nobreza e a simplicidade das expressões, a sobriedade da linguagem, a ausência de todo supérfluo. Se se a compara àquelas que estão reportadas em A Imitação do Evangelho (prefácio, e cap. III: O Cristo consolador), e que levam a mesma assinatura, embora obtidas por médiuns diferentes e em diferentes épocas, nota-se entre elas uma analogia evidente de tom, de estilo e de pensamentos que acusa uma fonte única. Por nós, dizemos que ela pode ser de O Espírito de Verdade, porque ela é digna dele; ao passo que delas vimos massas assinadas com este nome venerado, ou o de Jesus, cuja prolixidade, verborragia, vulgaridade, às vezes mesmo a trivialidade das idéias, traem a origem apócrifa aos olhos dos menos clarividentes. Somente uma fascinação completa pode explicar a cegueira daqueles que nisso se deixam prender, se não for também o orgulho de se crer infalível e o intérprete privilegiado dos puros Espíritos, orgulho sempre punido, cedo ou tarde, por decepções, mistificações ridículas e por infelicidades reais nesta vida. À vista desses nomes venerados, o primeiro sentimento do médium modesto é o da dúvida, porque não se crê digno de um tal favor.

 

Herculano afirma ainda: "...Kardec não tomava decisões dessa importância por seu próprio arbítrio...". Essa parece uma afirmação bem plausível (ou melhor, não seria nada além do normalmente esperado), mas confesso que tenho algumas dúvidas com relação a isso. Não acredito que Kardec fizesse conscientemente manipulações que pudessem ser rotuladas de "fraudulentas". Inclusive, é importante frisar que, tanto quanto pude averiguar, as duas versões desse texto (a "alterada", e a "não alterada") conviveram lado a lado nas sucessiva publicações de ambos os livros (O Livro dos Médiuns e o Evangelho Segundo o Espiritismo). Para que tivesse havido uma intenção de manipulação fraudulenta, seria esperado que as edições do Livro dos Médiuns após 1864 tivessem incorporado tais modificações, e isso aparentemente não se deu, o que parece indicar ausência de intenções fraudulentas. Tive acesso à décima primeira edição do Livro dos Médiuns em francês, publicada no ano de 1869 (Kardec morreu em fins de março deste ano). Mesmo que essa décima primeira edição tenha sido publicada depois do falecimento de Kardec (ou seja, após março de 1869), acho difícil que tão rapidamente revertessem uma eventual alteração que tivesse ocorrido neste texto específico sobre o qual estou falando. De qualquer maneira, seria interessante poder observar edições do Livro dos Médiuns entre 1865 e 1868, para confirmar de modo inequívoco a convivência das duas versões do texto nos dois livros diferentes.

As duas situações mais normais esperadas seriam, primeiro, que não tivesse havido nenhuma alteração. Ou, como segunda alternativa, que tivesse havido alteração com intenções fraudulentas, e aí ocorrendo tanto no Evangelho Segundo o Espiritismo como no Livro dos Médiuns. Mas tudo leva a crer que o que ocorreu não foi nenhuma dessas duas situações. Por que motivo, então, e através de que processos ocorreu essa alteração no texto atribuído (com cautela, mas também com certa confiança) a Jesus de Nazaré? A alteração na assinatura me parece ser o fato de menor importância. As alterações no texto é que de fato possuem um possível significado maior.

Eu disse acima que há, segundo penso, duas situações que teriam sido as mais naturalmente esperadas ("não alteração", ou "alteração com intenções fraudulentas"), e que na verdade o que penso ter ocorrido não foi nenhuma das duas. A situação menos esperada é, penso eu, justamente a que deve ter ocorrido, e que me parece bastante compatível com o modo como percebo Kardec em seus procedimentos e em suas relações com o movimento espírita francês de então. Dizendo de modo bem direto: a alteração foi feita por Kardec (ou "dirigida" por ele), julgando (conscientemente, pelo menos) que não havia problema algum nisso, mas no fundo (inconscientemente, quero crer) querendo "melhorar" o texto e expurgá-lo de "prováveis interferências indevidas do médium", não tanto na assinatura, mas sim em palavras, frases, e idéias.

É necessário frisar que isso que eu disse acima é uma especulação minha. Uma especulação de grande gravidade, sem dúvida. Mas é forçoso que eu diga que tal especulação é por mim feita tentando achar uma explicação coerente com as informações às quais tive acesso, e coerente também com o que consigo observar e perceber de Kardec através de seus escritos (tanto em suas virtudes, como em suas falhas).

Uma maneira de olhar toda essa questão é vê-la sob a perspectiva da seguinte pergunta: Diante de tal situação, ou seja, no lugar de Kardec, o que faria cada um de nós? A impressão que eu tenho é que a maioria de "nós" (mesmo se as alterações no texto e na assinatura tivessem sido ratificadas por "mais de dez médiuns diversos", e mesmo se o texto alterado e o não alterado fossem conviver nas subseqüentes edições do Evangelho Segundo o Espiritismo e do Livro dos Médiuns) teria uma grande preocupação em relatar o "como" e o "por quê" de tais alterações. O fato de Kardec não ter mostrado tal preocupação é, no mínimo, estranho.

Incluo no quadro abaixo o texto que consta do Livro dos Médiuns (o texto original não alterado). Os trechos em vermelho são os que foram retirados pura e simplesmente. Os em cor marrom são os que foram alterados. Em parênteses e em itálico (com quaisquer das cores utilizadas), estão comentários meus. Em seguida, incluí o texto "alterado" conforme consta do Evangelho Segundo o Espiritismo. Os textos são os que constam das edições atuais da FEB. Comparei tais textos com os originais franceses, e eles parecem quase que perfeitamente traduzidos, o que torna possível a exposição das alterações utilizando-se das versões em português. Precisei, contudo, incluir três palavras (uma no texto não alterado, e duas no texto alterado) para tornar praticamente perfeito o paralelismo entre as versões em português e em francês, e essas três inclusões estão em azul. De qualquer maneira, as versões originais em francês são mostradas também, logo após, com as mesmas cores indicativas.

Gostaria de chamar a atenção dos leitores para uma frase em especial. Não que ela contenha alterações mais importantes que as demais, mas pelo fato da análise dela ser mais difícil, daí eu usar outras duas cores. Nesta frase, coloquei a cor verde como representando o "assunto principal da frase"; e a cor lilás escuro como representando pequenos trechos que podem ser interpretados como "desvios do assunto principal" por parte do "Espírito de Verdade/Jesus de Nazaré". Esta frase em especial é apresentada em separado após as quatro tabelas abaixo, em uma quinta tabela própria, para mais fácil visualização e comparação.

Ao fim de todas as cinco tabelas seguintes, faço ainda alguns comentários analíticos sobre tais alterações.

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O Livro dos Médiuns (1861)

Venho, eu, vosso Salvador e vosso juiz; venho, como outrora, aos filhos transviados de Israel; venho trazer a verdade e dissipar as trevas. Escutai-me. O Espiritismo, como outrora a minha palavra, tem que lembrar aos materialistas (alterado para "incrédulos") que acima deles reina a imutável verdade: o Deus bom, o Deus grande, que faz germinar a planta e que levanta as ondas. Revelei a Doutrina Divina; como o ceifeiro, atei em feixes o bem esparso na Humanidade e disse: Vinde a mim, vós todos que sofreis!

Mas, ingratos, os homens se desviaram do caminho reto e largo que conduz ao reino de meu Pai e se perderam nas ásperas veredas da impiedade. Meu Pai não quer aniquilar a raça humana; quer, não mais por meio de profetas, não mais por meio de apóstolos, quer que, ajudando-vos uns aos outros, mortos e vivos, isto é, mortos segundo a carne, porquanto a morte não existe, vos socorrais e que a voz dos que já não existem ainda se faça ouvir, clamando-vos: Orai e crede! por isso que a morte é a ressurreição, e a vida - a prova escolhida, durante a qual, cultivadas, as vossas virtudes têm que crescer e desenvolver-se como o cedro.

Crede nas vozes que vos respondem: são as próprias almas dos que evocais. Só muito raramente me comunico. Meus amigos, os que hão assistido à minha vida e à minha morte são os intérpretes divinos das vontades de meu Pai.

Homens fracos, que acreditais no erro das vossas inteligências obscuras, não apagueis (alterado para "que compreendeis as trevas de vossas inteligências, não afasteis") o facho que a clemência divina vos coloca nas mãos, para vos clarear a estrada e reconduzir-vos, filhos perdidos, ao regaço de vosso Pai.

Em verdade vos digo: crede na diversidade, na multiplicidade dos Espíritos que vos cercam. Estou infinitamente tocado de compaixão pelas vossas misérias, pela vossa imensa fraqueza, para deixar de estender mão protetora aos infelizes transviados que, vendo o céu, caem no abismo do erro. Crede, amai, compreendei as verdades (alterado para "meditei sobre as coisas") que vos são reveladas; não mistureis o joio com o bom grão, os sistemas (alterado para "utopias") com as verdades.

Espíritas! amai-vos, eis o primeiro ensino; instruí-vos, eis o segundo. Todas as verdades se encontram no Cristianismo; são de origem humana os erros que nele se enraizaram. Eis que do além-túmulo, que julgais o nada, vos clamam vozes: Irmãos! nada perece; Jesus-Cristo é o vencedor do mal, sede os vencedores da impiedade.

Jesus de Nazaré (alterado para "Espírito de Verdade. Paris, 1860")

O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864)

Venho, como outrora aos transviados filhos de Israel, trazer-vos a verdade e dissipar as trevas. Escutai-me. O Espiritismo, como o fez antigamente a minha palavra, tem de lembrar aos incrédulos que acima deles reina a imutável verdade: o Deus bom, o Deus grande, que faz germinem as plantas e se levantem as ondas. Revelei a doutrina divinal. Como um ceifeiro, reuni em feixes o bem esparso no seio da Humanidade e disse: "Vinde a mim, todos vós que sofreis."

Mas, ingratos, os homens afastaram-se do caminho reto e largo que conduz ao reino de meu Pai e enveredaram pelas ásperas sendas da impiedade. Meu Pai não quer aniquilar a raça humana; quer que, ajudando-vos uns aos outros, mortos e vivos, isto é, mortos segundo a carne, porquanto não existe a morte, vos socorrais mutuamente, e que se faça ouvir não mais a voz dos profetas e dos apóstolos, mas a voz dos que já não vivem na Terra, a clamar: Orai e crede! pois que a morte é a ressurreição, sendo a vida é a prova buscada e durante a qual as virtudes que houverdes cultivado crescerão e se desenvolverão como o cedro.

Homens fracos, que compreendeis as trevas das vossas inteligências, não afasteis o facho que a clemência divina vos coloca nas mãos para vos clarear o caminho e reconduzir-vos, filhos perdidos, ao regaço de vosso Pai.

Sinto-me por demais tomado de compaixão pelas vossas misérias, pela vossa fraqueza imensa, para deixar de estender mão socorredora aos infelizes transviados que, vendo o céu, caem nos abismos do erro. Crede, amai, meditai sobre as coisas que vos são reveladas; não mistureis o joio com a boa semente, as utopias com as verdades.

Espíritas! amai-vos, este o primeiro ensinamento; instruí-vos, este o segundo. No Cristianismo encontram-se todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se enraizaram. Eis que do além-túmulo, que julgáveis o nada, vozes vos clamam: "Irmãos! nada perece. Jesus-Cristo é o vencedor do mal, sede os vencedores da impiedade."

O Espírito de Verdade.

O Livro dos Médiuns em Francês (1861)

Je viens, moi, ton Sauveur et ton juge ; je viens, comme autrefois, parmi les fils égarés d'Israël ; je viens apporter la vérité et dissiper les ténèbres. Ecoutez-moi. Le spiritisme, comme autrefois ma parole, doit rappeler aux matérialistes (alterado para "incrédules") qu'au-dessus d'eux règne l'immuable vérité : Dieu bon, le Dieu grand qui fait germer la plante et qui soulève les flots. J'ai révélé la doctrine divine ; j'ai comme un moissonneur, lié en gerbes le bien épars dans l'humanité, et j'ai dit : Venez à moi, vous tous qui souffrez !

Mais les hommes ingrats se sont détournés de la voie droite et large qui conduit au royaume de mon Père, et ils se sont égarés dans les âpres sentiers de l'impiété. Mon Père ne veut pas anéantir la race humaine ; il veut, non plus par des prophètes, non plus par des apôtres, il veut que vous aidant les uns les autres, morts et vivants, c'est-à-dire morts selon la chair, car la mort n'existe pas, vous vous secouriez, et que la voix de ceux qui ne sont plus se fasse entendre pour vous crier : Priez et croyez ! car la mort est la résurrection, et la vie, l'épreuve choisie pendant laquelle vos vertus cultivées doivent grandir et se développer comme le cèdre.

Croyez aux voix qui vous répondent : ce sont les âmes elles-mêmes de ceux que vous évoquez. Je ne me communique que rarement ; mes amis, ceux qui ont assisté à ma vie et à ma mort sont les interprètes divins des volontés de mon Père.

Hommes faibles qui croyez à l'erreur de vos obscures intelligences, n'éteignez (alterado para "qui comprenez les ténèbres de vos intelligences, n'éloignez") pas le flambeau que la clémence divine place entre vos mains pour éclairer votre route et vous ramener, enfants perdus, dans le giron de votre Père.

Je vous le dis, en vérité, croyez à la diversité, à la multiplicité des Esprits qui vous entourent. Je suis trop touché de compassion pour vos misères, pour votre immense faiblesse, pour ne pas tendre une main secourable aux malheureux égarés qui, voyant le ciel, tombent dans l'abîme de l'erreur. Croyez, aimez, comprenez les vérités (alterado para "méditez les choses") qui vous sont révélées ; ne mêlez pas l'ivraie au bon grain, les systèmes (alterado para "utopies") aux vérités.

Spirites ! aimez-vous, voilà le premier enseignement ; instruisez-vous, voilà le second. Toutes vérités se trouvent dans le christianisme ; les erreurs qui y ont pris racine sont d'origine humaine ; et voilà qu'au-delà du tombeau que vous croyiez le néant, des voix vous crient : Frères ! rien ne périt ; Jésus-Christ est le vainqueur du mal, soyez les vainqueurs de l'impiété.

Jésus de Nazareth. (alterado para L'Esprit de Vérité. Paris, 1860)

 

O Evangelho Segundo o Espiritismo em Francês (1864)

Je viens, comme autrefois, parmi les fils égarés d'Israël, apporter la vérité et dissiper les ténèbres. Écoutez-moi. Le spiritisme, comme autrefois ma parole, doit rappeler aux incrédules qu'au-dessus d'eux règne l'immuable vérité: le Dieu bon, le Dieu grand qui fait germer la plante et soulève les flots. J'ai révélé la doctrine divine; j'ai, comme un moissonneur, lié en gerbes le bien épars dans l'humanité, et j'ai dit: Venez à moi, vous tous qui souffrez!

Mais les hommes ingrats se sont détournés de la voie droite et large qui conduit au royaume de mon Père, et ils se sont égarés dans les âpres sentiers de l'impiété. Mon Père ne veut pas anéantir la race humaine; il veut que, vous aidant les uns les autres, morts et vivants, c'est-à-dire morts selon la chair, car la mort n'existe pas, vous vous secouriez, et que, non plus la voix des prophètes et des apôtres, mais la voix de ceux qui ne sont plus se fasse entendre pour vous crier: Priez et croyez! car la mort, c'est la résurrection, et la vie, c'est l'épreuve choisie pendant laquelle vos vertus cultivées doivent grandir et se développer comme le cèdre.

Hommes faibles, qui comprenez les ténèbres de vos intelligences, n'éloignez pas le flambeau que la clémence divine place entre vos mains pour éclairer votre route et vous ramener, enfants perdus, dans le giron de votre Père.

Je suis trop touché de compassion pour vos misères, pour votre immense faiblesse, pour ne pas tendre une main secourable aux malheureux égarés qui, voyant le ciel, tombent dans l'abîme de l'erreur. Croyez, aimez, méditez les choses qui vous sont révélées; ne mêlez pas l'ivraie au bon grain, les utopies aux vérités.

Spirites! aimez-vous, voilà le premier enseignement; instruisez-vous, voilà le second. Toutes vérités se trouvent dans le Christianisme; les erreurs qui y ont pris racine sont d'origine humaine; et voilà qu'au delà du tombeau que vous croyiez le néant, des voix vous crient: Frères! rien ne périt; Jésus-Christ est le vainqueur du mal, soyez les vainqueurs de l'impiété.

(L'ESPRIT DE VÉRITÉ. Paris, 1860.)

  

Frase especialmente analisada à parte:

O Livro dos Médiuns em português

Meu Pai não quer aniquilar a raça humana; quer, não mais por meio de profetas, não mais por meio de apóstolos, quer que, ajudando-vos uns aos outros, mortos e vivos, isto é, mortos segundo a carne, porquanto a morte não existe, vos socorrais e que a voz dos que já não existem ainda se faça ouvir, clamando-vos: Orai e crede!

O Evangelho Segundo o Espiritismo em português

Meu Pai não quer aniquilar a raça humana; quer que, ajudando-vos uns aos outros, mortos e vivos, isto é, mortos segundo a carne, porquanto não existe a morte, vos socorrais mutuamente, e que se faça ouvir não mais a voz dos profetas e dos apóstolos, mas a voz dos que já não vivem na Terra, a clamar: Orai e crede!

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O Livro dos Médiuns em francês

Mon Père ne veut pas anéantir la race humaine ; il veut, non plus par des prophètes, non plus par des apôtres, il veut que vous aidant les uns les autres, morts et vivants, c'est-à-dire morts selon la chair, car la mort n'existe pas, vous vous secouriez, et que la voix de ceux qui ne sont plus se fasse entendre pour vous crier : Priez et croyez !

O Evangelho Segundo o Espiritismo em francês

Mon Père ne veut pas anéantir la race humaine; il veut que, vous aidant les uns les autres, morts et vivants, c'est-à-dire morts selon la chair, car la mort n'existe pas, vous vous secouriez, et que, non plus la voix des prophètes et des apôtres, mais la voix de ceux qui ne sont plus se fasse entendre pour vous crier: Priez et croyez!

 

Comentários Sobre as Alterações:

Quem quer que tenha realizado as alterações acima, quer fosse ele um (ou mais) ente "encarnado" ou um ente "desencarnado", sabia muito bem o que estava fazendo. E o fez com grande competência! O resultado final é, primeiro, uma "melhoria" do texto quanto à forma de organização e exposição das idéias, aos olhos principalmente das regras de escrita preconizadas pelas culturas anglo-saxônicas e germânicas (que têm sido já de há muito tempo absorvidas pelas culturas latinas, de modo relativamente não crítico). Um segundo e talvez mais importante resultado das alterações é expurgar do texto trechos aparentemente incompatíveis com uma mensagem procedente de um "Espírito Superior".

Expondo a questão "estilística" de um modo bem simplificado, é considerado "um bom texto" um texto que tenha uma organização que siga os nossos padrões culturalmente esperados de "começo", "meio" e "fim"; um texto que fale de um assunto especificamente (isso é por vezes chamado de "unidade" do texto), ao invés de permitir que assuntos paralelos de relevância duvidosa se imiscuam no corpo do texto; um texto que, mesmo já atendendo à exigência de boa definição das seções começo/meio/fim, e mesmo já atendendo ao critério de falar apenas de um "assunto" (ou falar sobre mais de um "assunto", mas todos pertinentemente relacionados entre si, o que resulta igualmente na manutenção da "unidade" do texto), atenda também adicionalmente à exigência de não se ficar alternando os "assuntos" de modo caótico, tentando ao máximo passar para outro "assunto" somente após esgotar o anterior. Esse modo de exposição de idéias, o "modo escrito", conflita brutalmente com o "modo falado", ou seja, com nosso modo de usar a língua em conversas informais. São quase duas lógicas diferentes; e uma delas não é, pelo menos segundo meu modo de ver, melhor do que a outra. Elas possuem "forças" e "fraquezas" diferentes, e se aplicam a situações diferentes. Acontece que a lógica do "modo escrito" é a que predomina nos meios "intelectuais" e "cultos" de nossas sociedades ocidentais, ao ponto de não ter se restringido à língua escrita propriamente dita, mas de moldar a língua falada das pessoas em situações acadêmicas, formais, e "intelectuais" (apesar de mesmo os "intelectuais", quando em conversas informais, poderem ser tão ou mais caóticos em suas idéias e organização de frases do que o mais inculto dos incultos...). Isso faz com que seja esperado, por alguém imerso na cultura européia do século XIX (como eram praticamente todos os europeus de então, Kardec aí obviamente incluído também), que o discurso (escrito ou falado) de um "Espírito Superior" obedeça a tais regras da "língua escrita ocidental".

Os primeiros termos expurgados do texto original, "Venho, eu, vosso Salvador e vosso juiz; venho, como outrora, aos filhos transviados de Israel; venho trazer", parecem satisfazer aos critérios de evitar a redundância (o "supérfluo"), melhorando o estilo do texto, e também satisfazendo ao critério de evitar termos com tom coercitivo (vosso juiz), característica incompatível com o "Modelo Kardecista de Espírito Superior". A alteração de materialistas para incrédulos torna o termo mais abrangente, passando a incluir (potencialmente, pelo menos) todos os não-espíritas de qualquer religião, e não apenas os materialistas. Todo o trecho "Crede nas vozes que vos respondem: são as próprias almas dos que evocais. Só muito raramente me comunico. Meus amigos, os que hão assistido à minha vida e à minha morte são os intérpretes divinos das vontades de meu Pai" foi retirado. Ele incita muito fortemente à crença ("fé irrefletida"), e não ao raciocínio ("Fé Raciocinada"), além de inserir "assuntos" aparentemente "irrelevantes", como "Só muito raramente me comunico" e também "Meus amigos, os que hão assistido à minha vida e à minha morte são os intérpretes divinos das vontades de meu Pai". O trecho "Homens fracos, que acreditais no erro das vossas inteligências obscuras" parece um pouco depreciativo para conosco, nos colocando bastante "para-baixo". Foi alterado para o trecho "Homens fracos, que compreendeis as trevas de vossas inteligências", que nos coloca num patamar um pouco menos, digamos, "burros", e conseqüentemente torna o trecho menos ofensivo, como seria de se esperar de um "Espírito Superior". O trecho "Em verdade vos digo: crede na diversidade, na multiplicidade dos Espíritos que vos cercam" foi retirado por completo, possivelmente por se tratar de um "assunto paralelo". Talvez a alteração mais interessante tenha sido "compreendei as verdades que vos são reveladas", alterado para "meditei sobre as coisas que vos são reveladas". Trata-se claramente de uma correção do desvio de rumo, expurgando a "fé irrefletida" e substituindo-a pela "Fé Raciocinada".

Além dos expurgos, o texto alterado recebeu também duas "inclusões". Elas também parecem tudo menos inocentes. A introdução da palavra "voz" ("não mais a voz dos profetas") é muito inteligente em termos de engenharia de texto, e será comentada mais abaixo no contexto daquela frase como um todo. A inclusão da palavra "é" adiciona paralelismo à estrutura da frase, além de colocar em mais forte evidência os elementos que se seguem. É interessante comparar essa "inclusão" e seus possíveis objetivos com uma outra situação mais ou menos similar, mas onde houve, contudo, um "expurgo". Trata-se do trecho "O Deus...que faz germinar a planta e que levanta as ondas". Aqui não parece muito interessante ressaltar os dois termos seguidos à palavra "que" ("faz germinar a planta" e "levanta as ondas"). Ao expurgar a palavra "que", O resultado final é: não ressaltar os dois termos, e evitar a redundância. No caso anterior, a palavra "é" acrescenta paralelismo e ressalta os dois elementos (é melhor usar o trecho em francês para visualizar isso: "car la mort, c'est la résurrection, et la vie, c'est l'épreuve choisie"). Ao incluir a palavra "é" (ou no original em francês, a dupla inclusão "c'" e "c'est"), O resultado final é: ressaltar os dois termos, e acrescentar paralelismo. O que vai determinar se em uma dada situação está ocorrendo "paralelismo" ou se, ao invés, está ocorrendo "redundância" é, em grande parte, o contexto; e, além do contexto, também o... freguês!

O trecho original era:

"Meu Pai não quer aniquilar a raça humana; quer, não mais por meio de profetas, não mais por meio de apóstolos, quer que, ajudando-vos uns aos outros, mortos e vivos, isto é, mortos segundo a carne, porquanto a morte não existe, vos socorrais e que a voz dos que já não existem ainda se faça ouvir, clamando-vos: Orai e crede!"

O trecho original acima sofreu uma mexida de profundidade significativa, passando a ser:

"Meu Pai não quer aniquilar a raça humana; quer que, ajudando-vos uns aos outros, mortos e vivos, isto é, mortos segundo a carne, porquanto não existe a morte, vos socorrais mutuamente, e que se faça ouvir não mais a voz dos profetas e dos apóstolos, mas a voz dos que já não vivem na Terra, a clamar: Orai e crede!".

Observem a alternância de "assuntos" no texto original: verde lilás verde lilás verde.

Agora observem como o texto alterado ficou bem menos "caótico": verde lilás verde.

A inclusão da palavra "voz", de que falei mais acima, tornou possível encaixar de modo não caótico dois trechos que anteriormente estavam em "descompasso organizativo" no texto original (e que, inclusive, nem estavam adjacentes no texto original): "não mais por meio de profetas, não mais por meio de apóstolos"-"vos socorrais e que a voz dos que já não existem ainda se faça ouvir, clamando-vos" (texto original não alterado). Isso foi alterado para: vos socorrais mutuamente, e que se faça ouvir não mais a voz dos profetas e dos apóstolos, mas a voz dos que já não vivem na Terra, a clamar (texto alterado).

Um trabalho formidável! Só resta saber se "Jesus de Nazaré" aprovou (ou mesmo se ele aprovaria)...

Kardec, ao apresentar a primeira edição do Evangelho Segundo o Espiritismo (em texto que eu apresentei um pouco mais acima, entitulado: "Comunicação Espírita: A propósito de A Imitação do Evangelho. - Bordeaux, maio de 1864; grupo de Saint-Jean. - Médium, Sr. Rul. - seguido de Nota Explicativa de Kardec"), disse a respeito daquela outra mensagem assinada pelo "Espírito de Verdade" (a que consta naquele quadro):

"Diremos, no entanto, que não se pode nela desconhecer a elevação do pensamento, a nobreza e a simplicidade das expressões, a sobriedade da linguagem, a ausência de todo supérfluo. Se se a compara àquelas que estão reportadas em A Imitação do Evangelho (prefácio, e cap. III: O Cristo consolador), e que levam a mesma assinatura, embora obtidas por médiuns diferentes e em diferentes épocas, nota-se entre elas uma analogia evidente de tom, de estilo e de pensamentos que acusa uma fonte única." (grifos meus)

Kardec nos aconselha a compararmos a mensagem de que ele fala com aquelas igualmente assinadas pelo "Espírito de Verdade" que aparecem no Evangelho Segundo o Espiritismo (A Imitação do Evangelho, como era entitulada a primeira edição), e ao fazermos isso iremos constatar uma "analogia evidente de tom", de "estilo", e de "pensamentos", além da "ausência de todo supérfluo", o que, segundo ele, acusaria uma "fonte única".

Mas como podemos fazer tais comparações com um grau mínimo de confiança e concordarmos com Kardec quanto à "fonte única" se, pelo menos com relação a uma dessas mensagens assinada pelo "Espírito de Verdade" (e aparentemente uma de grande importância, pois que parece ter sido uma das únicas que ele assinou como "Jesus de Nazaré"), houve justamente "expurgos dos supérfluos", "expurgos de alguns pensamentos", "reestruturação do estilo", e "alteração do tom"?!

E isso tudo sem que se informasse "como", ou "por quê".


 

Kardecismo: Verdade, ou Mentira?

Conforme tento, então, demonstrar neste texto, minha leitura das obras de Kardec e de outras obras assessórias me leva a avaliar que o método do qual Kardec se utilizava para estudar o "mundo espiritual", apesar de possuir virtudes bastante notáveis, possuía também fraquezas altamente danosas; além disso, tal método foi utilizado por Kardec de modo, por vezes, falho; e, aparentemente, o método deixou mesmo de ser utilizado por Kardec em algumas situações importantes.

Kardec, já na página 2 do primeiro fascículo da Revista Espírita (janeiro de 1858), define os objetivos desse seu periódico de modo muito bem equilibrado e científico, dizendo:

"Não se poderia, pois, contestar a utilidade de um órgão especial, que mantenha o público ao corrente dos progressos desta ciência nova, e o premuna dos exageros da credulidade, tão bem quanto contra o ceticismo."

Contudo, a mim parece que Kardec manteve, ao longo de seus quase quinze anos de dedicação ao espiritismo, um equilíbrio extremamente precário entre a cautela e a credulidade.

Apesar disso, penso ser um grande erro desconsiderar tanto o trabalho de Kardec (e suas conclusões) como todo o trabalho realizado pelos espíritas kardecistas desde então. Como religião, o espiritismo kardecista constitui-se de um corpo doutrinário interessante e mesmo revolucionário em vários aspectos com relação às religiões ocidentais de meados do século XIX. Um dos exemplos talvez mais tocantes disso é a postura kardecista com relação aos "espíritos obsessores". Na Igreja Católica (no século XIX, e talvez ainda atualmente), tais entidades eram vistas como demônios a serem execrados. No kardecismo, esses seres eram (e são) vistos como criaturas irmãs necessitadas de compreensão e apoio (nada mais, nada menos, do que espíritos de pessoas que já viveram). Um exemplo típico de "não varrer o problema para baixo do tapete", mas sim "enfrentá-lo cara a cara, e resolvê-lo".

Como filosofia, o kardecismo oferece insumos também interessantes para discussões a respeito de questões existenciais e ontológicas sobre o homem e o Universo.

Como ciência, o kardecismo pode estar de fato, como penso, muito distante do minimamente satisfatório; contudo, ele definitivamente não se constitui em um paradigma nulo. Ou seja, eu considero que há, de fato, fertilidade científica potencial no corpo teórico-fenomenológico do espiritismo kardecista. E em alguns casos (não muito numerosos, pelo menos ao que sei), essa fertilidade transcende mesmo o "potencial" e atinge, pelo menos preliminarmente, o "realizado". Um exemplo disso é, creio, o trabalho realizado pelo Núcleo Espírita Universitário da Universidade Estadual de Londrina, Paraná (NEU-LD), e dentro deste grupo em especial, o trabalho do Professor Carlos Augusto Perandréa, utilizando-se da grafoscopia no estudo da psicografia.

Alguma coisa de muito estranha parece ter, de fato, ocorrido no mundo em meados do século XIX. Curiosamente, vem dessa época um dos casos "paranormais" mais sólidos talvez já registrados: o caso Daniel Dunglas Home. Até mesmo os "céticos" mais bem gabaritados da atualidade em metodologia de pesquisas parapsicológicas (como por exemplo, Ray Hyman) afirmam inequivocamente que não há como explicar o que se passava com Home.

Igualmente, meus contatos ao longo dos últimos 15 meses com céticos e pseudocéticos, pesquisadores psi e espíritas (por emails e por leitura de artigos científicos), me pôs em contato com uma parapsicologia inimaginavelmente mais robusta do que eu poderia imaginar. Diante de informações bem embasadas a respeito do estado atual das pesquisas em parapsicologia, não há cético honesto que não "se cale": Sólidas demonstrações em "percepção extra-sensorial" e em "psicocinese"; pesquisas intrigantes e bem conduzidas (ainda que longe de satisfatórias) sobre lembranças de "vidas passadas" em crianças entre 3 e 8 anos de idade; alguns resultados interessantes na área de "Experiências Fora do Corpo" (apesar de inconclusivos e, também, talvez bastante contraditórios); relatos de estudos de casos extraordinários (ainda que pouco numerosos) em "Experiências de Quase-Morte"; estudos interessantes sobre "cirurgia espiritual"; e alguns poucos ("poucos" pelo menos que eu, em minhas limitadas informações, saiba) trabalhos aparentemente bem promissores na área de estudo da "mediunidade".

Basicamente, há quatro posturas possíveis diante dos fenômenos "espíritas" e "mediúnicos":

1- Toda interpretação espiritualista desses fenômenos é falsa, e a verdade é o mundo dos materialistas.

2- Tais fenômenos estão além da nossa ciência atual, são "sobrenaturais", ou "paranormais", mas sem que haja espíritos, e sem que haja a sobrevivência de nossa consciência à morte de nossos corpos físicos.

3- Há espíritos, há sobrevivência pós-morte, e há "mediunidade". Mas as "interferências" nas comunicações entre os "vivos" e os "mortos" são enormes, a ponto de tornar extremamente difícil, mas talvez não impossível, um conhecimento a respeito do mundo "além da vida".

4- Há espíritos, vida após a morte, e mediunidade. E há também "interferências" nas comunicações dos espíritos. Mas os procedimentos preconizados por Kardec minimizam tais interferências a um nível tal que é possível conhecer-se bastante bem a situação do mundo pós-morte.

Minha posição pessoal dentre essas quatro listadas acima é a de número 3. E, além disso, acho que (e nisso concordando com os auto-proclamados "céticos" - nacionais e internacionais - a despeito da minha crença na vida após a morte e na reencarnação) a afirmação de que "Há Vida após a Morte" é uma afirmação que ainda carece de arcar com o "ônus da prova" que lhe é devido, científica e socialmente.

Uma posição de menor "certeza" com relação aos postulados clássicos kardecistas poderia trazer muitos benefícios em termos de abertura para pesquisas e investigações diversas. E esse é, sem dúvida, o maior objetivo meu em apresentar "erros" nas obras kardequianas. Há, provavelmente, muito material (livros espíritas do século XIX, manuscritos de Kardec, etc.) na Federação Espírita Brasileira e em outras instituições similares, que poderia fornecer insumos muito ricos a respeito da real dimensão tantos dos "erros" como dos "acertos" do espiritismo kardecista. E poderia também haver um aumento (em número e em qualidade) de pesquisas experimentais a respeito da mediunidade, principalmente se tais pesquisas atendessem ao que penso haver de mais rico na metodologia de Kardec: O Respeito aos Espíritos. O interesse dos espíritos em contactar-nos pode ser pequeno ou até mesmo nulo. É o nosso interesse no contato (ou, no caso de alguns materialistas, no "não contato") que é, por motivos que nem "Freud" e talvez nem "Darwin" expliquem, visceral. Portanto, ver os espíritos como "cobaias de laboratório" pode não ser um bom começo!

Mas há de fato muitos erros no espiritismo kardecista, em especial erros científicos...

No Livro dos Espíritos há, logo no início (nos "Prolegômenos"), um desenho curioso que teria sido publicado por "ordem" dos "Espíritos Superiores" como uma metáfora do "Trabalho do Criador". É o desenho de uma videira, ou de uma parte de uma videira, contendo uma "cepa" (caule) com um cacho carregado de "bagos" (uvas). Os "espíritos" assim explicaram o desenho:

"Porás no cabeçalho do livro a cepa que te desenhamos, porque é o emblema do trabalho do Criador. Aí se acham reunidos todos os princípios materiais que melhor podem representar o corpo e o espírito. O corpo é a cepa; o espírito é o licor; a alma ou espírito ligado à matéria é o bago. O homem quintessencia o espírito pelo trabalho e tu sabes que só mediante o trabalho do corpo o Espírito adquire conhecimentos."

 

 

Kardec ainda explica essa metáfora mais a fundo na página 132-133 do Livro dos Espíritos, em nota após a resposta dada à pergunta número 196:

"O suco da vide nos oferece um símile material dos diferentes graus da depuração da alma. Ele contém o licor que se chama espírito ou álcool, mas enfraquecido por uma imensidade de matérias estranhas, que lhe alteram a essência. Esta só chega à pureza absoluta depois de múltiplas destilações, em cada uma das quais se despoja de algumas impurezas. O corpo é o alambique em que a alma tem que entrar para se purificar. Às matérias estranhas se assemelha o perispírito, que também se depura, à medida que o Espírito se aproxima da perfeição."

Poderia haver algo de errado em uma metáfora tão singela? Infelizmente, ou, felizmente, há!

Não há licor no desenho acima. O álcool ainda não está, aí, presente! Só depois, quando as uvas (bagos) forem rompidas e determinadas espécies de fungos iniciarem a metabolização do açúcar contido no interior da uva, é que o álcool será criado.

Por uma estranha ironia do destino, o único símbolo que uma doutrina altamente não-simbólica como o kardecismo aceitou colocar em um de seus livros, "abrindo" por assim dizer a obra mais importante da Doutrina Espírita, o Livro dos Espíritos, símbolo este aí colocado por "ordem" dos "Espíritos Superiores" e com a supervisão e revisão do "Espírito de Verdade", não é um símbolo espírita, e nem sequer um símbolo espiritualista:

É um símbolo materialista!

(Clique Neste Link para ler os trechos originais em francês relativos a esse comentário meu acima).

Isso sem dúvida dá margem a muitas reflexões. Uma lição que talvez esteja contida nisso seja a de que, na verdade, devemos valorizar todas as opiniões (no caso, mesmo as opiniões materialistas), pois fragmentos da verdade podem se esconder nos locais mais inesperados. Mas talvez mais do que isso, haja também aí uma estranha mensagem: a de que, se não houver espíritos, nada impede que eles sejam... criados! Afinal, é isso o que fazem os fungos com as uvas: criam o licor.

Vivemos em um Universo muito, muito antigo, e ninguém tem a menor idéia do que isso pode potencialmente representar. Civilizações tecnológicas altamente avançadas podem vir a dominar as "leis da natureza" de um modo tão completo ao ponto de se transformarem em verdadeiros Deuses, criadores e destruidores de Universos. E talvez mesmo, criadores de almas. Mesmo há uns cinco bilhões de anos atrás, quando a Terra ainda nem existia, já havia, possivelmente, Civilizações Divinas com centenas de milhões de anos. Ou não. Talvez "Deuses" tenham acompanhado, e até interferido, no aparecimento e no desenvolvimento da vida na Terra. Ou não.

Independente de se a metáfora da videira representa o "mundo kardecista", o "mundo materialista", ou um "mundo alternativo" onde Deus e Espíritos são filhos da matéria (e não os pais dela), uma única certeza parece emergir disso tudo. Podemos ir tão longe a ponto de questionarmos mesmo o "primeiro" dos Mandamentos: "Amai a Deus acima de todas as coisas". Mas nada, absolutamente nada, poderá jamais contestar a riqueza e a solidez do "segundo":

 

Amai ao Próximo Como a Ti Mesmo!

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Júlio César de Siqueira Barros - Biólogo.
Rio de Janeiro,
11 de agosto de 2003.


 Bibliografia:  

1- O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Tradução de Guillon Ribeiro. 79a edição. Federação Espírita Brasileira. Rio de Janeiro. 1997.

2- O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec, 1857 - Texto em Fac-Simile Versão em Face, Primeiro Centenário, 1957. tradução de Canuto Abreu. 1a edição. Companhia Editora Ismael. São Paulo. 1957.

3- Livro dos Espíritos segunda edição original em francês de 1860, Centre D'Etudes Spirites Leon Denis, http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/Livres/LE6.pdf

4- O Que é o Espiritismo - Contendo a Biografia de Allan Kardec por Henri Sausse. Allan Kardec. 38a edição. Federação Espírita Brasileira. 1997.

5- O Livro dos Médiuns. Allan Kardec. Tradução de Guillon Ribeiro. 62a edição. Federação Espírita Brasileira. Rio de Janeiro. 1996.

6- O Livro dos Médiuns. Allan Kardec. Tradução por José Herculano Pires da segunda edição francesa de 1862. 8a edição. Livraria Allan Kardec Editora. São Paulo. 1978.

7- Livro dos Médiuns de 1869 décima primeira edição em francês. Centre D'Etudes Spirites Leon Denis. http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/Livres/LM6.pdf

8- O Evangelho Segundo o Espiritismo. Allan Kardec. Tradução de Guillon Ribeiro da terceira edição francesa. 113a edição. Federação Espírita Brasileira. Rio de Janeiro. 1997.

9- Imitation de l'Évangile Selon le Spiritisme. Allan Kardec. Edição brasileira da primeira edição do original francês de abril de 1864. Federação Espírita Brasileira. 1979.

10- O Céu e o Inferno. Allan Kardec. Tradução de Guillon Ribeiro. 42a edição. Federação Espírita Brasileira. Rio de Janeiro. 1998.

11- Obras Póstumas (de Allan Kardec). Tradução de Guillon Ribeiro da primeira edição francesa de 1890 - Paris. 27a edição. Federação Espírita Brasileira. 1995.

12- Revista Espírita - Jornal de Estudos Psicológicos. Fascículos de janeiro de 1858 a junho de 1869. Publicada sob a direção de Allan Kardec. Tradução de Salvador Gentile. Revisão de Elias Barbosa. Instituto de Difusão Espírita. 1993.

13- O Problema do Ser, do Destino, e da Dor. Léon Denis. 23a edição. Federação Espírita Brasileira. Rio de Janeiro. 2000.

14- As Mesas Girantes e o Espiritismo. Zêus Wantuil. 3a edição. Federação Espírita Brasileira. Rio de Janeiro. 1994.

15- Allan Kardec - Meticulosa Pesquisa Bibliográfica. Volume 1. Zêus Wantuil e Francisco Thiesen. 1a edição. Federação Espírita Brasileira. Rio de Janeiro. 1979.

16- Allan Kardec - Pesquisa Bibliográfica e Ensaios de Interpretação. Volume 2. Zêus Wantuil e Francisco Thiesen. 1a edição. Federação Espírita Brasileira. Rio de Janeiro. 1980.

17- Allan Kardec - Pesquisa Bibliográfica e Ensaios de Interpretação. Volume 3. Zêus Wantuil e Francisco Thiesen. 1a edição. Federação Espírita Brasileira. Rio de Janeiro. 1980.

18- O Tao da Física. Fritjof Capra. Tradução da 2a edição em inglês por José Fernandes Dias. Editora Cultrix. São Paulo. 1984.

19- Biologia Evolutiva. Douglas J. Futuyma. 2a edição. Sociedade Brasileira de Genética. Ribeirão Preto. 1992.

20- Reincarnation: a Critical Examination. Paul Edwards. Prometheus Books. Amherst, New York. 1996.

21- O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Tradução de Evandro Noleto Bezerra a partir da 2a, 4a, 5a, 6a, 10a e 12a edições francesas. Primeira edição comemorativa do sesquicentenário do Livro dos Espíritos. Federação Espírita Brasileira. Rio de Janeiro. 2006.